O Começo das Crianças na Sociedade Pós-Pandêmica

Luca Moreira
17 Min Read

Daqui a dois meses, no dia 13 de março, irá completar dois anos que a Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro ordenou a suspensão das aulas na rede pública e privada. No início, a ideia era adiar por 15 dias, apenas por medida provisória em um momento que o “inimigo” ainda não era tão conhecido. Porém, nós todos sabemos o quanto ele infelizmente impactou nossas vidas.

No final do ano passado, a educação voltou a tentar se estabilizar com um retorno gradual dos alunos presencialmente nas instituições de ensino. A volta às aulas veio com várias novidades para as crianças, os pais e os educadores, porém, há um grupo do qual precisamos abordar — os nascidos na pandemia.

Apesar do início do ano letivo ocorrer geralmente nos primeiros dias de fevereiro, a preocupação desses novos pais já sobrevém há bastante tempo. São várias perguntas a serem feitas, porém, todas cercando um único tópico — “Como será a integração dessas crianças no mundo além das paredes de suas famílias?”

Com a recente aprovação da Anvisa em relação à disponibilidade das vacinas Pfizer para crianças de cinco a 11 anos no Brasil, a Moreira Comunicação abriu os olhos sobre como seriam os primeiros contatos das crianças que nasceram de março de 2020 para cá e como está a visão dos pais, professores e psicólogos na tão esperada preparação dessas Boas-vindas.

A balança entre a educação e a saúde

Apesar da alta das vacinas com mais da metade da população brasileira vacinada e a terceira dose em andamento, a variante Ômicron e outra recém-descoberta pelo Instituto Hospitalar Universitário (IHU) de Marselha na França, o receio está começando a pesar ainda mais na decisão dos pais. Tal situação foi o caso da blogueira Camila Pavan, mãe da Pietra, de um ano e cinco meses, que ingressou ano passado no maternal, e que apesar da preocupação, sentiu que esse espaço de interação era uma necessidade para o desenvolvimento da filha — “A preocupação com a transmissão de doenças é grande, afinal minha filha raramente saia de casa, nunca havia ficado doente até então. Porém, sabemos que na escola, além de obter grandes benefícios para o desenvolvimento da criança, é um ambiente onde a criança compartilha, socializa e também acaba se expondo mais aos vírus e doenças.”

Para a mãe da Sofia, de um ano e cinco meses, Mariana Rocha Dantas, o desafio está em encontrar a escola certa, que além de atender às questões de segurança e saúde, possa também ir de encontro com as ideias que tem para a filha — “Será a minha primeira experiência escolar como mãe. Certamente a minha escolha da escola passará por sentir confiança nos profissionais que ali trabalham. A relação pais e professores sempre foi importante. Agora é ainda mais crucial. Espero poder ter nos professores da minha filha uma extensão do cuidado e educação que pratico em casa. Certamente optei por uma instituição com profissionais que compartilhem os meus valores.”

A situação de Mariana na escolha baseada em princípios de educação e segurança, também é compartilhada por Camila Pavan que aponta como importante o monitoramento constante das crianças pelas escolas e responsáveis.

A visão de Mariana também é compartilhada pela professora Yasmin Dias, que atualmente leciona para o jardim de infância. Yasmin explicou sobre a importância do laço dos pais com os professores, argumentando que tal contato direto é vital e pode proporcionar um desenvolvimento até maior do que esperado na expectativa —  “Essa fase é um processo de transição onde a criança ainda é muito dependente dos pais. Eles são porto de segurança, as pessoas em quem a criança mais confia. Então esse contato direto dos professores com os pais é fundamental. Quando os pais demonstram confiança nos professores, acompanham o trabalho de perto e dão continuidade a esse trabalho em casa, o desenvolvimento da criança passa a fluir melhor do que o esperado.”

Milena Jenckel de São Paulo, teve seu filho de um ano e nove meses, nascido no início da pandemia, e por esse motivo, acredita que a família tem conseguido suprir até o momento a experiência social que a criança teria na escola — “Quando começou o isolamento social, o meu filho havia acabado de nascer, era um recém-nascido e ainda não interagia muito com o mundo externo, por esse motivo acredito que tenhamos conseguido suprir a falta de socialização. Conforme ele foi crescendo foi ficando um pouco mais difícil, mas tentamos estar sempre presentes, brincando junto, fazendo atividades para ele se distrair ao máximo.”

Interferência em relações

Foto: Pixabay

Entrevista com Yasmin Dias

Em relação às expectativas, todos os entrevistados concordaram que estariam mais apreensivos que as crianças nesse momento de inserção escolar, principalmente devido ao mundo limitado.

A professora Yasmin Dias, explicou em entrevista que o seguimento e adaptações realizadas de acordo com as orientações da Organização Mundial da Saúde (OMS), acabam “quebrando” alguns pilares essenciais nas relações na sala de aula — “Agora precisamos lidar com o uso das máscaras, o que torna bem difícil para as crianças entenderem nossas expressões faciais; precisamos nos preocupar com o distanciamento, com os abraços, com a higienização do ambiente e a higienização pessoal de cada criança. Além disso, as aulas presenciais acontecem em um ambiente completamente diferente e a interação das crianças passa a ser muito mais intensa, então também é um processo de adaptação que vamos precisar lidar conforme a demanda de cada turma.”

A professora também falou sobre a diferença do processo de adaptação dos nascidos na pandemia e afirmou que até que as crianças consigam se encontrar totalmente no ambiente escolar poderá levar mais tempo do que normalmente acontece — “Essa adaptação será um processo muito mais difícil. Crianças nascidas na pandemia tiveram contato só com os pais e no máximo com familiares bem próximos, então inserir ela em um ambiente completamente diferente e com muitas pessoas diferentes de uma vez só é muito assustador. A adaptação da criança ao ambiente escolar se torna muito mais demorada, cansativa e demanda muita paciência e preparo tanto da equipe escolar quanto dos pais.”

Sobre a adaptação, a professora enfatiza a responsabilidade do corpo docente — “A ansiedade de voltar para sala de aula é absurda e a necessidade de nos prepararmos para isso também. Acredito que a preparação dos alunos para esse momento ficará por nossa conta.”

Uma nova etapa de passo a passo

Foto: Pixabay

Sobre essa nova etapa prevista em 2022, a socialização já é uma decisão quase unânime para todas as famílias. Apesar de não acreditar na solução em 100% ainda nesse novo ano, Camila diz que a solução está sempre na busca pelo contorno da situação. Para sua filha Pietra, o desafio é sempre querer mais estímulos do que já possui ao seu alcance — “A criança quer sempre mais. Você brinca, estimula, faz o possível, porém criança sente falta de gente. No primeiro dia que a Pietra foi para a escola não queria vir embora, pois lá ela encontrou estímulos que não conseguimos dar em casa.”

As questões com estímulos e socialização também afetaram Mariana no primeiro ano de sua filha, pois o convívio ficou estritamente limitado em um pequeno ciclo de convivência — “No primeiro ano de vida Sofia ficou restrita ao convívio diário com 4 adultos e eventual com outros 6. Total de 10 pessoas. Para nós que viemos de família grande, foi um desafio. Tivemos que lidar com a própria ansiedade de não poder apresentar a nossa filha aos familiares e amigos próximos, assim como o medo de como ela reagiria no dia em que esse contato fosse possível. Mesmo lidando com tudo isso, o medo do vírus era muito maior, especialmente enquanto não havia vacina.”

Já Milena Jenckel , tenta sempre tomar cuidado com a aproximação do filho em relação às pessoas próximas, seja com a família ou com os amigos — “Tento deixar ele interagir ao máximo com pessoas próximas que eu sei que estão cumprindo os protocolos de segurança. Como tios, primos (que possuem idades próximas) e amigos mais próximos!”

A situação da falta de convívio social também preocupou a professora Yasmin Dias que está buscando novas estratégias para a adaptação das crianças ao ambiente escolar — “O desafio está sendo desenvolver estratégias para facilitar a adaptação ao convívio social, tendo em mente de que estaremos lidando com crianças que passaram a maior parte de seu desenvolvimento em condição de isolamento, trabalhar o “eu, ele e nós” de uma forma que construa na criança a empatia, o respeito ao espaço dos demais e a ideia de que ela faz parte de um todo. Tudo isso respeitando os protocolos de segurança.”

Da mesma forma que as mães afirmaram buscar formas de oferecer estímulos na própria casa, Yasmin também conta das possibilidades de tentar se aproximar um pouco do que seria uma relação na escola, inclusive de como algumas brincadeiras podem fortalecer os laços entre os filhos e os responsáveis — “Existem muitas atividades, jogos e brincadeiras que podem ajudar a criança a se desenvolver longe do ambiente escolar. Inclusive é na relação com os pais que a criança desenvolve sua autonomia e confiança. Os pais podem ajudá-la a tomar pequenas decisões no dia a dia, descobrir juntos o que gostam de fazer, de brincar, podem cozinhar juntos, enfim, são infinitas as possibilidades.”

Uma incógnita na análise de desenvolvimento

Entrevista com Letícia Segretti

Buscando compreender a situação através do lado psicológico, a equipe da Moreira Comunicação conversou também com a psicóloga e neuropsicóloga Letícia Segretti, fundadora de uma clínica de avaliação e desenvolvimento infantil que leva seu nome.

Em relação aos impactos causados (ou não) pelo distanciamento social das crianças nesses primeiros tempos de vida, Letícia, que também é mãe de um filho com dois anos e dois meses, afirma que além de ainda não ter uma comprovação científica que a pandemia causou atrasos no desenvolvimento dos pequenos é complicado generalizar, tendo em vista que as realidades de cada família são diferentes. Em sua própria experiência, apesar de passar o dia fora trabalhando, o filho desenvolveu muito bem em casa com o pai e avós.

A profissional afirma que a busca por consulta terapêutica tem aumentado consideravelmente. Porém não é possível afirmar que isso está relacionado a “crianças de pandemia” que estão com atrasos e dificuldades psicológicas ou se essas crianças já teriam essas dificuldades, independente do contexto pandêmico, e/ou se elas já tinham os sintomas e devido a convivência em casa as famílias tem percebido mais as dificuldades.

Devido ao convívio maior que os pais estão tendo com os filhos na pandemia, a psicóloga ressalta que esse está sendo um momento de conhecimento maior — “Acredito que pelos pais estarem mais em casa com suas crianças, eles estão vendo no dia a dia coisas que antes não observavam em seus filhos por passarem o dia todo fora trabalhando. Com os pais dentro de casa as famílias acabam servindo de modelo para o desenvolvimento deles.”

Sobre as questões relacionadas ao desempenho escolar e as formas de lidar com a educação, o cenário também contribuiu para que os pais percebessem mais rápido as dificuldades escolares de seus filhos — “Pais que não sabiam como eram seus filhos na escola e só ouviam uma reclamação ou outra do professor, estão hoje vivenciando na pele eles no sistema ‘online’, sendo extremamente agitados e desatentos como sempre foram.”

A respeito da dificuldade de um diagnóstico específico dos problemas causados com o isolamento social, de fato a psicologia, de acordo com Letícia, ainda não concluiu um estudo sobre suas consequências: “O que eu mais falo aos pais que vem fazer avaliação e querem saber se o atraso do filho pode ser devido à pandemia é: não tem como sabermos, porque não tem estudos para isso. O que eu sei é apenas a minha experiência com o meu filho. Ele não teve nenhum problema de desenvolvimento pela pandemia, tendo alcançado até um desenvolvimento mais do que esperado para a idade dele.”

Em relação a procura por avaliação neuropsicológica para compreender se o filho tem algum diagnóstico: “O que eu mais falo aos pais que vem fazer avaliação e querem saber se o atraso do filho pode ser devido à pandemia é: não tem como sabermos! Ainda não tem estudos para isso. O que eu sei é apenas a minha experiência com o meu filho. Ele não teve nenhum problema de desenvolvimento pela pandemia, tendo alcançado até um desenvolvimento maior do que o esperado para a idade dele. Atraso é atraso, independente de pandemia ou não precisamos estimular!”

Letícia Segretti é atualmente mestranda em distúrbios do desenvolvimento, trabalha com avaliações neuropsicológicas, supervisão e treinamento de profissionais da área de saúde, tratamento de pessoas com atrasos no desenvolvimento ou dificuldades acadêmicas, atendendo inclusive o público surdo, autista, TDAH, etc. Atualmente compartilha em suas redes sociais sua própria experiência como pessoa com TDAH e sobre psicologia infantil.

Share this Article