Em seu mais recente livro, “O Primeiro Golpe do Brasil”, o jornalista premiado Ricardo Lessa explora o golpe de 1823 liderado por D. Pedro I, revelando os impactos duradouros dessa ação na trajetória histórica do país. Com uma narrativa detalhada e baseada em extensa pesquisa em arquivos do século 19, Lessa desmistifica a imagem heroica de D. Pedro I, frequentemente apresentada nos livros escolares. O livro narra como o jovem imperador, ao fechar a primeira Assembleia Constituinte do Brasil em 12 de novembro de 1823, perseguiu aliados, prendeu e baniu adversários, censurou a imprensa, e consolidou seu poder cercando-se de conterrâneos despreparados e promovendo o escravismo.

Lessa traz à tona os bastidores de um período crítico do Brasil, compreendido entre a Independência, em 1822, e a Abdicação, em 1831. Ele expõe a disputa entre os defensores dos privilégios aristocráticos e os republicanos constitucionalistas, revelando como a vitória do atraso nesse conflito moldou os últimos 200 anos da história brasileira. O autor, com vasta experiência em veículos de imprensa como Jornal do Brasil, Correio Braziliense, Valor Econômico e em TVs Globo, Manchete e GloboNews, além de ter sido âncora do Roda Viva da TV Cultura entre 2018 e 2019, utiliza sua bagagem jornalística para oferecer uma visão crítica e bem fundamentada deste capítulo da história.

“O Primeiro Golpe do Brasil” se apresenta como uma leitura essencial para entender as raízes das questões políticas e sociais que ainda permeiam o Brasil contemporâneo. Com uma escrita envolvente, Ricardo Lessa convida os leitores a repensarem os conceitos de heroísmo e liderança, oferecendo uma nova perspectiva sobre a figura de D. Pedro I e os eventos que marcaram o início da história republicana do país.

O que motivou você a investigar e escrever sobre o golpe de 1823?

Eu nasci no Rio, cresci no Rio, as primeiras matérias que escrevi no Jornal do Brasil na década de 70 ainda eram sobre história do Rio, por onde passou a história do Brasil desde 1808. Sempre foi meu interesse.

Durante a sua pesquisa, houve algum fato ou documento que te surpreendeu particularmente?

A maior surpresa foi que o número de desembarques de africanos no Rio de Janeiro se deu justamente no período governado por Pedro I.

Você menciona que D. Pedro I perseguiu aliados e baniu adversários. Pode nos dar exemplos específicos dessas ações?

O mais famoso perseguido foi José Bonifácio de Andrada, que passou para a história como “Patriarca da Independência”. Depois de Pedro fechou a Constituinte em 12 de novembro de 1823, baniu José Bonifácio do Brasil. Ele ficou seis anos exilado na França. Outro destaque é o primeiro processo movido contra um jornalista no Brasil, João Soares Lisboa, editor do Correio do Rio de Janeiro.

Como foi o processo de acesso e análise dos arquivos do século 19 para a escrita deste livro?

Esse livro foi gestado longamente. Estive no Arquivo Nacional e na Biblioteca Nacional. Por mais de 10 anos, como moro em São Paulo, contei com a colaboração da jornalista Ruth Joffily para revirar outros arquivos do Rio de Janeiro.

Em que medida o golpe de 1823 moldou a estrutura política e social do Brasil contemporâneo?

O golpe de 1823 foi a vitória do autoritarismo contra a primeira tentativa de organizar o país constitucionalmente. Em lugar da Constituição discutida, Pedro e seus aliados portugueses e brasileiros, presenteados com títulos de nobreza, podaram a Constituição que estava sendo discutida, criaram o Poder Moderador, uma instância acima do Legislativo e do Judiciário, e deixaram o rei fora do alcance das leis, o que é absolutamente fora de propósito de todas as constituições do mundo até aquela data. Constitucionalismo significa limitar os poderes dos monarcas, o rei reina e não governa.

Aqui a monarquia conseguiu se livrar das leis e criou essa premissa histórica no país. Além disso, a monarquia só se sustentou porque vigorava o escravismo. Quando um acabou o outro acabou junto. Deixando marcas ainda mais profundas do que a se vê em outros países.

Ricardo Lessa
Ricardo Lessa

Em sua opinião, por que a figura de D. Pedro I foi tão idealizada nos livros escolares?

Qualquer poder, desde sempre quer se apresentar como bondoso e popular. Os déspotas não se apresentam como cruéis. A memória é uma área poderosa e todos os poderosos querem ganhar espaço para suas versões da história. Primeiro dominam a memória para depois ditar o comportamento da sociedade, como diz Susan Sontag, a pensadora americana.

Quais foram as principais consequências do golpe de 1823 para a imprensa e a liberdade de expressão na época?

Depois do fechamento da Constituinte, só houve reunião da Assembleia Geral em 1826. Foi uma longa noite de arbítrio em que só o monarca, (a palavra já diz, mono, governo de um só) mandou. Com o Poder Moderador e a distribuição de títulos e cargos pela monarquia, inaugurou-se essa prática promíscua de poder econômico e instâncias políticas.

Como você vê a comparação entre a monarquia de D. Pedro I e uma ditadura moderna?

Pedro seguiu o modelo de Napoleão, que celebrizou o Coup d’état de 1788, quando fechou o Diretório e inaugurou uma ditadura própria. Dali surgia a palavra bonapartismo, que foi usada sobre os diversos golpes e tentativas de golpes militares que se seguiram na história.

Você acredita que o Brasil teria sido significativamente diferente se a Assembleia Constituinte de 1823 tivesse conseguido implementar suas propostas liberais?

O Brasil seria diferente se tivesse tido força suficiente para ser um país republicano, como os vizinhos todos e os Estados Unidos. Mas a formação social que existia na época, com mais da metade da população escravizada e outra grande parte dependente do escravismo, não deixava muita margem para as ideias republicanas. Nossos líderes republicanos foram barbaramente reprimidos, começando por Tiradentes, depois Frei Caneca e João Soares Lisboa, o jornalista que morreu de armas na mão defendendo ideias republicanas em 1824 em Pernambuco.

Qual mensagem você espera que os leitores tirem ao ler “O primeiro golpe do Brasil”?

Que deixem de ser enganados pelos monarquistas e seus descendentes disfarçados, autoritários e despóticos, que volta e meia não querem se apear do poder. Que enxerguem que monarquia e escravismo eram unha e carne. E que consigam se livrar cada vez mais dessas cicatrizes horríveis de nossa história. É preciso rasgar o véu desse faz-de-conta e enxergar o que é preciso jogar fora.

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