O cantor e compositor Gustavo Ortiz apresenta o single “José, João” — uma homenagem musical às trajetórias invisíveis de quem constrói o Brasil com as próprias mãos. Com produção artística de Romulo Fróes e uma atmosfera de samba urbano, a canção resgata memórias de trabalhadores que, como o pai de Ortiz, dedicaram a vida ao esforço cotidiano, tornando-se personagens fundamentais da história do país.
“José, João” foi lançada no Dia do Trabalhador e carrega consigo esse gesto de reverência e memória. O que te levou a transformar esse sentimento em música e como foi escolher justamente essa data para apresentar a canção ao mundo?
O que me levou a isso foi ter nascido e crescido em meio a trabalhadores, numa família da classe trabalhadora. É uma reverência aos que me formaram, mas é também minha própria memória de vida em meio a esses trabalhadores e trabalhadoras. Não se trata de uma narração à distância, ao contrário, falar dessas pessoas é falar da minha história, do mundo de onde vim. A escolha da data foi bem espontânea, quando percebi que conseguiria lançá-la naquela época do ano. Eu já havia feito algo parecido com um primeiro single, em 2021, chamado “Porvir (uma rapsódia de carnaval)”, lançado naquela quarta-feira de cinzas pandêmica. Sempre que alguma data fizer sentido com o tema da canção, essa será a escolha para o lançamento, também como um modo de afrontar um pouco a lógica dos streamings, que prega os habituais lançamentos de quinta para sexta.
Você compôs a faixa a partir de lembranças do seu pai, que teve uma trajetória marcada pelo esforço e simplicidade. Como foi lidar com o luto durante o processo criativo e transformar a dor em homenagem musical?
Meu pai foi um homem simples, que passou a vida trabalhando e não teve a oportunidade de desfrutar de sua aposentadoria, pois faleceu logo em seguida. Foucault, o filósofo francês, diria que ele foi um produto perfeito do capitalismo: serviu seu corpo ao trabalho por toda a vida e não deu despesas à previdência social quando deixou de ser um “corpo produtivo”, na lógica capitalista, é claro. Assim, transformar esse luto num tipo de homenagem passa, principalmente, por um misto de sentimentos de ódio, por perdê-lo cedo, e de revolta, por ele, claro, mas também por todos que, como ele, tiveram esse mesmo destino. É menos uma homenagem no sentido mais comum da palavra do que um grito de revolta que tenta chegar às pessoas na forma de canção.

A escolha dos nomes “José” e “João” representa milhares de trabalhadores invisíveis no Brasil. Você se lembra de algum momento específico em que sentiu a necessidade de dar nome e rosto a essas figuras em forma de arte?
José e João são nomes considerados genéricos, e, nessa canção, eles dão mesmo esse tom, mas o mais importante é que esses são os dois nomes masculinos mais usados no Brasil, por isso justamente dizem respeito a milhões e milhões de brasileiros, que têm nome, rosto, corpo e uma vida. Por mais contraditório que isso possa parecer, ao usar esses nomes não tive a intenção de generalizar, mas de falar do maior número de trabalhadores possível e, principalmente, de tratar do tema numa escala coletiva, mas não genérica. Não quis usar o nome de meu pai justamente para não soar como uma trama individual, porque, na realidade, se trata de milhões de tramas individuais vividas diariamente. Até por isso falei de dois trabalhadores com temperamentos distintos, mas que, a despeito disso, acabam sofrendo as mesmas consequências. Não se trata de José e João como um tipo de representação ou abstração genérica, mas de cada um dos Josés e Joões que vivem por aí, com seus corpos e histórias únicas. Eu tentei apontar para o coletivo olhando para o individual. A música brasileira é rica nisso de dar nomes e rostos a essas figuras. Eu bebo nessa tradição, não apenas em “José, João”, mas em outras canções que virão.
Romulo Fróes, que já havia colaborado com você em “Trago”, retorna aqui como produtor e parceiro nos vocais. O que essa parceria representa para você artisticamente e pessoalmente? E como ela contribuiu para a potência dessa canção?
Não é sempre que alguém com o talento e a bagagem de alguém como o Romulo se interessa em produzir o som de um completo desconhecido no meio musical. Acho que, em primeiro lugar, essa parceria representa um tipo de confirmação, a mim mesmo, da força das minhas canções. Em segundo lugar, a produção do Romulo potencializou as canções do EP. A gravação do EP foi minha primeira experiência em estúdio profissional, e havia muita insegurança de minha parte. Ele foi fundamental para que eu pudesse me sentir como um compositor gravando suas músicas sem dever nada a ninguém. Artisticamente, Romulo foi essencial para o resultado, tanto nas escolhas de arranjo e no time que ele reuniu para a gravação quanto na própria intuição como compositor, pois “José, João”, especificamente, estava encostada, na época com menos da metade das estrofes que tem agora, e foi ele quem viu o potencial dessa canção e praticamente exigiu que eu a terminasse. Além disso, a voz de Romulo na gravação trouxe muita força à história que eu estava contando. Essa parceria promete muitos frutos ainda; compomos nossa primeira canção juntos e Romulo está produzindo meu primeiro álbum, contemplado pelo edital do PROAC e que está no início das gravações.

Musicalmente, “José, João” mescla samba urbano com nuances de baião e partido-alto. Como você buscou essa sonoridade específica para sustentar a força da letra, e quais foram as referências que guiaram essa construção?
O primeiro verso surgiu na minha cabeça, melodia e letra, exatamente como foi gravado, enquanto eu tocava uma progressão de acordes em samba que andava comigo já há certo tempo, e assim fui seguindo a composição, mas a deixei encostada um tempo. Quando Romulo me desafiou a terminá-la, senti que ela pedia uma mudança de levada, uma segunda parte. Naquele momento, eu estava estudando, de modo bem autodidata e disperso, o violão de partido-alto do João Bosco, e foi nele que fui buscar um pouco daquela levada das segundas partes. Mas como o violão do João Bosco é inimitável, minha versão da batida dele ficou entre o partido-alto e o baião, o que eu gostei e senti que encaixava no que eu ia dizer ali. Uma coisa que eu acho fundamental na sonoridade desta canção é o fato de a letra ter uma força e uma mensagem um tanto carregada, mas com uma melodia mais suave, quase terna. Sinto que isso ajuda a sustentar a ideia da canção. Além disso, o cavaco do Rodrigo Campos foi muito importante para a força de “José, João”; o cavaco conta a história junto com a letra.
A canção também dialoga com o livro O que é meu, de José Henrique Bortolucci. De que maneira a leitura dessa obra ampliou seu entendimento sobre sua própria história e a narrativa que você quis trazer na música?
Ganhei o livro do José Bortolucci justamente quando estava no processo de retomar a composição de “José, João”. Assim como eu, ele também é filho de caminhoneiro, vem dessa classe trabalhadora que tenta “vencer na vida” pelo estudo, e, também assim como eu, se formou em Ciências Sociais. Além do fato de o livro ser lindo e muito bem escrito, eu reconheci muita coisa naquela narrativa. De algum modo, o livro me libertou de uma resistência que eu tinha de colocar algumas referências mais pessoais na letra. Foi a partir da leitura do livro que eu decidi citar coisas como “canhota de zagueiro”, “boia-fria”, “boleia”, “palavras cruzadas”, que são referências mais diretas ao meu pai, que foi boia-fria, caminhoneiro, jogador de futebol de várzea e adorava palavras cruzadas. O livro me relembrou a possibilidade de que, quando bem feito, ao tratar do individual, estamos também na dimensão do coletivo, especificamente quando falamos de temas como os que permeiam tanto o livro quanto a canção. O bonito é que o José Bortolucci ouviu a música e fez uma postagem no próprio Instagram dizendo que se emocionou. Chamou de “um samba bonito, doce e triste, como todo bom samba”. Fiquei feliz em retribuir, de algum modo, a emoção que tive ao ler seu livro.

Você comentou sobre como a canção busca provocar empatia e indignação — principalmente em tempos em que o trabalho formal tem sido banalizado por alguns discursos. Como artista e cientista social, como você enxerga a responsabilidade da arte no debate público sobre trabalho, dignidade e memória?
Não à toa, quando os movimentos conservadores avançam, a arte é sempre um dos principais alvos de ataque, mesmo por parte dos representantes mais imbecis desses movimentos. Ela se torna alvo justamente por seu poder de proposição de novos modos de pensar e viver, algo que apavora os conservadorismos, os fascismos e também as doutrinas que sustentam o capitalismo (que, em geral, também são conservadoras e fascistas). Ações, artísticas ou não, que se inserem no debate público propondo repensar, por exemplo, os modos como as classes mais pobres vivem o trabalho, recebem imediatamente críticas como “não é bem assim, o país não pode parar”, “a economia deve crescer, pois isso beneficiará a todos” e frases do tipo, que desaprovam modos que não sejam a extração completa das energias dos trabalhadores em favor de seus patrões. A filósofa Isabelle Stengers chama isso de “alternativas infernais”, ou seja, as possibilidades de escolha estariam entre o ruim e o menos pior. Nesse caso, o que estaria colocado para os trabalhadores é a escolha entre não trabalhar, morrendo de fome, ou comer, morrendo de trabalhar. Basta acompanhar o movimento social VAT — Vida Além do Trabalho, que propõe a revisão da escala de trabalho 6×1. O VAT está propondo uma mudança concreta na vida do trabalhador, preocupado com uma vida mais digna e com a memória das lutas trabalhistas que vieram antes. E o que ele está recebendo é uma enxurrada de críticas do “mercado”, esse ente quase sobre-humano, das classes abastadas e um certo boicote até mesmo do próprio governo, que tem receio de comprar essa luta e perder a chamada governabilidade. Obviamente com muito menos alcance, mas eu coloco “José, João” nessa mesma luta — não apenas essa canção específica, mas outras de meu próprio trabalho e de outros compositores e compositoras do país. No entanto, sinto que artistas da música poderiam, ou ao menos deveriam, estar participando mais ativamente dos debates públicos fundamentais do país.
“José, João” faz parte de um novo EP que marca uma nova fase na sua trajetória. O que você espera que esse trabalho cause nas pessoas? E qual é o maior desejo que te move nesta nova etapa como artista?
“José, João” faz parte do EP Desafogo, com canções compostas entre 2009 e 2024. Por isso, o desejo mais imediato que me move com este trabalho é, enfim, colocar minhas canções no mundo depois de tanto tempo tentando. Até por isso esse foi o título do EP — além de ser o título de uma das canções, é também meu próprio desafogo pessoal e artístico de lançar meu trabalho de modo mais profissional. A parceria com Romulo dá mais força ainda a isso tudo, assim como o convite para ser um artista do selo TRUQ, um novo selo no mercado, preocupado com a música mesmo e voltado para a música brasileira contemporânea. Foi uma honra ser o primeiro lançamento feito pelo selo. Espero que esse EP sirva como um trabalho de apresentação, uma primeira amostra de minhas…
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