O Código de Defesa do Consumidor (“CDC”), Lei nº 8.078/90, completou no último 11 de setembro 30 anos de vigência. E, por conta da importância de tal diploma para o direito brasileiro, muito se tem falado sobre o assunto.
É claro que na década de 1990 até meados dos anos 2000, a maioria das compras eram feitas fisicamente, por meio de idas frequentes a lojas físicas em ruas de comércio, Shoppings Centers e centros de comércio em geral. Há algum tempo, no entanto, essa não mais representa a atualidade do mercado de consumo de bens e serviços no Brasil, onde até mesmo bens de consumo duráveis e de alto valor envolvido como, por exemplo, veículos estão sendo adquiridos on-line pelos consumidores. Essa, com certeza, não era uma realidade previsível quando do nascedouro do CDC em 11 de setembro de 1990.
Leandro Basdadjian Barbosa é advogado sênior na área de contencioso cível estratégico. É pós-graduado em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, graduado pela Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Possui experiência adicional em direito do agronegócio, imobiliário, do consumidor e em processos envolvendo recuperação judicial de empresas e falências. Confira a entrevista!
Nesse último mês, o código de defesa do consumidor, expedido no ano de 1990, completou seus 30 anos de atuação no Brasil. Qual é a importância desse código para a sociedade e em que casos ele pode ser aplicado?
O Código de Defesa do Consumidor tem relevante importância para assegurar um equilíbrio nas relações de consumo, já que os consumidores são, via de regra, a parte mais fragilizada na relação comercial quando estão contratando com empresas, no que diz respeito a direitos e deveres. O diploma consumerista, como também é conhecido, tem aplicabilidade nas relações contratuais “finalistas”, ou seja, quando a aquisição do bem ou serviço é feita pelo destinatário final daquele produto, para utilização própria. Exemplos: compra de um aparelho celular para uso pessoal, contratação de um serviço de internet para a residência.
A respeito das flexibilizações do CDC, o âmbito do Superior Tribunal de Justiça, relembrou esse ano sobre as questões paradigmáticas que foram enfrentadas, entre uma delas estão as adequação e gerações de interpretações flexíveis que se afloram com as mudanças nas relações de consumo como um todo, a fim de acompanhar as mudanças econômicas. Até que ponto essas interpretações podem ser “toleradas”, por assim dizer, nos comércios locais, e como o consumidor pode evitar ser atingido negativamente por elas?
Na verdade, as interpretações que se fizeram necessárias no decorrer do tempo geraram também um entendimento determinado sobre determinada ou determinadas questões que acabavam gerando dúvidas ou abrindo margem a discussões com base no texto legal quando ele era aplicado aos diferentes casos concretos. Ou seja, não é que há diferentes interpretações que podem ser toleradas nos comércios, mas sim um aperfeiçoamento do entendimento aplicável em determinadas situações, e estas adequações de entendimento dadas pelos Tribunais Superiores devem ser seguidas pelos comerciantes, sob pena de infringir o direito dos consumidores.
Um dos fatores que mais vemos chamando atenção, inclusive em relação a consumidores finais de lojas de varejo, é que nos dias atuais as pessoas têm optado por comprarem em sites de compras ou aplicativos, estando sujeitos a inúmeras burocracias impostas pelas empresas. Um desses exemplos é o direito ao arrependimento e a sua limitação, que foi recentemente sancionada em lei pelo governo. Como as empresas costumam reagir essa lei e porque existem tantas tentativas de enrolar os consumidores?
De fato, a burocracia é algo enraizado no Brasil e, infelizmente, ela também existe nas relações de consumo, um tanto diferentemente do que podemos verificar em países com uma economia mais desenvolvida, como, por exemplo, os Estados Unidos, em que há uma maior eficiência no atendimento às demandas dos consumidores. Por outro lado, é importante ter em mente também a noção de consumo consciente, ou seja, o consumidor tem que agir conforme a boa-fé e probidade, para que exerça seus direitos sem que isto seja um peso negativo na outra ponta da relação de consumo. Em outras palavras, embora o direito ao arrependimento seja um benefício previsto no artigo 49, do CDC e, de fato, as empresas devam deixar isso claro nas vendas feitas on-line, por outro lado o consumidor deve utilizar esse mecanismo de forma eficiente, quando realmente o tamanho não for o mais adequado ou quando o produto não for aquilo prometido, de modo a evitar onerar indevidamente o sistema e as empresas com custos extras que seriam evitáveis, eis que as empresas, por suas vezes, também são oneradas com custos diversos e impostos altíssimos. A sugestão é que, ainda que a compra se dê por meio virtual, o consumidor pesquise antes sobre o produto e sobre a empresa, busque avaliações e comentários sobre a qualidade do produto e a reputação da empresa, leia a descrição completa do item antes de colocar no carrinho e finalizar a compra. Com isso, certamente os consumidores serão mais assertivos nas compras e terão menos problemas com eventuais burocracias.
Entre a década de 1990 até meados de 2000, a maioria das compras era feita fisicamente, e isso foi substituído pela transição das lojas para o mundo virtual, onde se é possível realizar até a compra de carros. Como advogado e defensor da justiça, o senhor acredita que naquela época, as questões relacionadas ao CDC eram mais solucionáveis?
Eu não vejo, inicialmente, uma substituição completa ou transição das compras físicas para as compras exclusivamente virtuais. Principalmente porque ainda há muitos atrativos na compra presencial, como, por exemplo, o atendimento dedicado de um vendedor, a possibilidade de avaliação imediata do produto para ter certeza sobre a compra e a possibilidade de negociação de descontos ou parcelamentos. Também acho difícil cravar que nos anos de 1990/2000 as questões relacionadas ao CDC eram mais solucionáveis, até porque hoje em dia as relações de consumo são muito mais dinâmicas, as compras são muito mais simples do que eram e as pessoas têm mais crédito do que tinham lá atrás. O que me parece mais preciso talvez seja dizer que as problemáticas de outrora existiam em menor número, justamente por conta de toda essa mudança no modo como as pessoas passaram a fazer compras.
Recentemente, fomos informados pelo E-commerce Brasil, um site dedicado a analisar esse determinado tipo de mercado, que as lojas brasileiras atingiram cerca de 1,27 bilhão de acessos, apenas no mês de agosto, mostrando um crescimento de 7,4% em comparação ao mesmo período em 2019. Esses dados preocupam o mercado jurídico em relações ás denuncias por consumidores?
Não preocupam, até porque o aumento nestes números não significa, necessariamente, um aumento nas demandas de problemas aos consumidores, notadamente tendo em vista que o mercado brasileiro vem se modernizando e, consequentemente, ampliando a eficiência nos produtos e serviços. Além disso, é certo que a grande maioria das empresas brasileiras é séria e atende aos consumidores de acordo com o previsto na legislação consumerista; se assim não ocorrer, cada vez mais os consumidores estão amparados pela própria internet, com o atendimento não só on-line dos PROCONs, mas também de sites dedicados a reclamações e reivindicações, que costumam ser levados bastante em consideração pelas empresas porque interferem nas suas reputações, além das redes sociais, que também exercem importante papel nesta tarefa de informar os consumidores e também assegurar um tratamento eficiente e justo.
Uma das questões que acredito que possam gerar discursões, são as mais diversas possibilidades de interpretação dos direitos do consumidor aplicados por lojistas e vendedores. Como o cliente deve reagir na presença dos vendedores e como se proteger de ser enganada ou cair em golpes dados pelas empresas?
Minha sugestão é para que, sempre que a compra envolva algum bem importante ou de relevante valor, o consumidor se informe antes, não só sobre os seus direitos, mas também sobre a lisura da empresa fornecedora daquele produto ou serviço. É claro que acidentes podem acontecer, mas com alguns simples passos prévios de preparação, como uma pesquisa prévia na internet sobre o direito envolvido naquela compra, por exemplo, com certeza ajudará a minimizar os riscos de eventuais golpes.
Existe nos dias de hoje, uma certa preocupação por parte dos consumidores de conteúdos de entretenimento online, como os serviços de streaming, lojas de aplicativos, e outros serviços que oferecem a renovação de assinatura automática em serviços tanto brasileiros como estrangeiros. Quais as precauções que os usuários devem tomar em relação á essas assinaturas de contratos virtuais e como o CDC age sobre esse tipo de negócio mais tecnológico?
A preocupação nas compras virtuais é necessária, quase mandatória. Com relação a serviços, por exemplo, de streaming, lojas de aplicativos, e outros serviços que oferecem a renovação de assinatura automática, é muito importante que o consumidor leia com atenção, antes da contratação, todas as condições do negócio, as famosas “letrinhas”, para buscar prevenir ao máximo problemas futuros. Como o consumidor é tido como a parte mais vulnerável na relação comercial, caso a empresa não esteja atendendo às determinações do CDC, ou caso as informações prestadas não sejam suficientemente claras, é garantido o questionamento do contrato e, se o caso, a revisão da contratação.
Segunda a previsão do artigo 49 do CDC, o consumidor pode desistir do contrato no prazo de sete dias após sua assinatura ou do ato do recebimento de um produto ou serviço. É comum vermos muitos processos judiciais em relação á isso? Nesse caso, como o consumidor ou o comerciante podem se defender?
Lembrando que a disposição do artigo 49, do CDC, ou o direito ao arrependimento, aplica-se apenas nas hipóteses de compras não presenciais. Eu não tenho conhecimento sobre a existência, na justiça, de um levantamento específico sobre os assuntos envolvidos nos processos de consumidores, mas penso que a maioria das demandas de consumidores ainda esteja relacionada a eventuais descumprimentos de prazos de garantia dos produtos. Sobre a segunda parte da pergunta, em casos mais simples, até mesmo visando uma melhor eficiência e agilidade, a recomendação é para que o consumidor e/ou o comerciante se valha dos mecanismos extrajudiciais existentes, como contato direto com a outra parte, pelos consumidores por meio da Ouvidoria ou do SAC e, se não funcionar, por meio dos já mencionados PROCONs e sites de reclamações.
Recentemente, ainda esse ano, o direito ao arrependimento sobre uma importante limitação com a edição da Lei no 14.010, que dispões a partir de junho sobre o Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado (RJET) no período da pandemia do COVID-19. O que motivou essa alteração e quais os efeitos que serão aplicados em relação aos comerciais e compradores? Essa lei também se aplica aos serviços de delivery e alimentos e medicamentos?
A suspensão da aplicação do artigo 49, do CDC, pelo artigo 8º, da Lei nº 14.010/2020, limitou-se às hipóteses de compras por meio de “entrega domiciliar (delivery) de produtos perecíveis ou de consumo imediato e de medicamentos”. Essa limitação decorreu, a meu ver, da preocupação existente em minar possíveis focos transmissores de Coronavírus, seja com devoluções de produtos manuseados, seja com eventuais deslocamentos para trocas. Com relação aos produtos perecíveis e de consumo imediato, essencialmente alimentos, os efeitos acabam sendo mais imediatos e irreversíveis, justamente por conta da própria natureza dos produtos – não é possível aguardar o término do período de suspensão para se cogitar eventual desistência/devolução. Com relação aos medicamentos, embora também se trate de um produto crítico porque deve ser comercializado inviolado e, essencialmente, por farmácias, me parece mais viável uma avaliação do caso após a superação do prazo legal em 30 de Outubro, para garantir, na medida do possível, o atendimento de eventuais demandas com desistência/devolução no prazo de 7 dias.
Em vista da disposição do artigo 49 do CDC, e do artigo 8º da Lei no 14.010/2020 é no caso a possibilidade garantia oferecidas pelas empresas, porém acontecem muitos relatos de enganação na hora de ganhar ou comprar a garantia, que em alguns casos você é cobrado a mais pelo ganho da garantia, como são aqueles pacotes de estendidas. A venda desses tipos de garantias é legal, ou a lei impõe a obrigação do estabelecimento oferecer uma garantia por padrão?
A contratação das garantias estendidas não é vedada, até porque ela deve decorrer de um exercício de vontade e, por assim dizer, de uma contratação “destacada” do contrato principal, que é a compra do produto. Se essa contratação da garantia estendida já estiver embutida na compra do principal, com acréscimo no preço, e se não for dada ao consumidor a oportunidade de negar a contratação, pode-se estar diante da conhecida venda casada, provavelmente questionável. Mas, como sempre, é importante analisar o caso específico. Ainda sobre as garantias, sim, o CDC estabelece diferentes prazos específicos de garantia para diferentes produtos e serviços, duráveis ou não, que devem ser observados pelas empresas fornecedoras. Em outras palavras, o mínimo da garantia não pode ser reduzido, mas é possível que se negocie a ampliação da garantia, se for interessante aos contratantes.
Para finalizarmos a entrevista, temos uma pergunta muito reflexiva: como você imaginaria o mundo antes de 30 anos atrás? Como seriam tratados os problemas relacionados aos consumidores?
Penso que no mundo antes de 30 anos atrás a oferta de produtos e de serviços era muito mais limitada do que é hoje e, até por conta disso, muito mais pessoal e artesanal, se assim podemos dizer. Com isso, os problemas relacionados aos consumidores, novamente a meu ver, acabavam sendo atendidos mais conforme a demanda, caso a caso, sem um regramento fixo com relação a uma ou outra situação. Com certeza o cada vez maior desenvolvimento da oferta de produtos e de serviços, aliado ao crescimento da economia do país, levou a necessárias positivações de regras, direitos e deveres, para uma maior clareza e um maior profissionalismo nas relações de consumo. Embora ainda estejamos aquém do ideal, entendo que hoje em dia e, cada vez mais, os consumidores estão sendo vistos com atenção e, a empresa não acompanhar essa realidade, com certeza se tornará obsoleta.