Através de novo livro, Renato Maia explora o drama existente na realidade da classe trabalhadora

Luca Moreira
11 Min Read
Renato Maia
Renato Maia

Em Histórias que um pessimista contaria a seus netos se tivesse decidido ter filhos, Renato Maia aproxima a tragédia clássica do cotidiano brasileiro, revelando como o drama, muitas vezes associado a heróis e mitos, encontra espaço na vida comum. Com 40 contos que refletem os desafios da classe trabalhadora, o autor explora temas como desigualdade, solidão e luta pela sobrevivência, misturando melancolia e humor para abordar as complexidades da existência contemporânea.

No seu livro, você aborda como o trágico também pode ser encontrado nas vidas comuns da classe trabalhadora. O que o levou a escrever sobre o sofrimento humano a partir dessa perspectiva?

Primeiramente, acredito que foi uma questão de identificação. Por mais que os temas das tragédias clássicas sejam universais, os personagens envolvidos são de uma esfera muito limitada e distante de nós, pessoas comuns que não são solucionadores de enigmas de seres mitológicos, nem herdeiros de tronos escandinavos (para citar duas das minhas favoritas). A tragédia também pode se dar na fila de um mercado, para uma mãe que apanha do companheiro em silêncio, para não acordar os filhos que têm aula na manhã seguinte, ou na espera sob o sol escaldante para se visitar um pai presidiário. De um ponto de vista prático, penso que essas coisas conversam mais comigo do que as manchas de sangue imaginárias da Lady Macbeth, apesar de eu venerar essa imagem e a obra de Shakespeare.

Apesar do foco em temas como pobreza e violência, seu livro encontra espaço para o humor. Como você utiliza tristeza e humor para criar uma narrativa envolvente e reflexiva?

Sim, o humor, para mim, é essencial. É aquela coisa que o Guimarães fala no Grande Sertão: a vida esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem. O exercício que eu tento fazer nesse livro e para o qual eu convido o leitor a se juntar a mim é entender como funciona e de onde vem essa coragem que nos faz seguir. Talvez uma resposta possível a essa questão seja o humor, por isso em qualquer coisa que aconteça, por mais triste e trágica que seja, a meu ver, sempre tem que ter alguém apontando um aspecto insólito ou satírico daquele evento, uma espécie de músicos do Titanic que oferecem um playlist para o naufrágio.

Você se inspira em filósofos e escritores como Clarice Lispector e Schopenhauer, que exploram a complexidade da condição humana. Como suas inspirações nestes autores se fazem presente no livro?

Como são autores bastante presentes nas minhas leituras, espaçadas ao longo da minha vida, tenho certeza de que meu imaginário está de certa forma povoado pelas atmosferas que eles criaram em suas obras. Nesse livro não há nada especificamente inspirado em nenhum dos filósofos, autores e autoras mencionados, o que há é um exercício de imaginação e conjectura de como esses autores sairiam dos impasses e dilemas narrativos com os quais me deparei ao longo da escrita do livro. Em contos em que narro em primeira pessoa e a protagonista é feminina, tentei imaginar como a subjetividade presente na obra de Clarice moldaria os atos da personagem.

Muitas das histórias retratam a luta pela sobrevivência no caos das metrópoles. Como você enxerga a relação entre os desafios urbanos e a sensação de desamparo descrita em seus contos?

Acredito que a cidade e, principalmente, o ato de deambular pela cidade é uma peça fundamental desse meu processo criativo. Claro que andar no transporte público paulistano não é uma atividade à qual possamos escrever odes, mas eu tento aproveitar o tempo que estou nesse ambiente para ouvir e observar aqueles e aquelas que me interessam. Ver suas impressões e prioridades nesse jogo insano de esquenta e esfria que é a vida. Certa vez eu observei um casal, e eu inclusive me baseei nessa observação numa crônica do meu livro anterior “Allegro Ma Non Troppo”, e esse casal de namorados, aparentemente formado há pouco tempo, analisava o calendário do ano seguinte em busca de emendas de feriados para traçarem seus planos de viagens. Aquilo me espantou e ao mesmo tempo fiquei maravilhado diante daquele exercício de otimismo tão acentuado, face à fragilidade da vida. A cada estação entra gente e sai gente, e são tantas histórias, desconexas em princípio, mas que no fundo estão urdidas em um pano comum, que talvez seja a esperança de algum porvir, nem que seja apenas um feriado prolongado.

Renato Maia
Renato Maia

Você menciona que a arte busca sentido diante do desespero. Para você, o ato de escrever é uma tentativa de organizar o caos ou de encontrar algum tipo de redenção?

Eu penso que seja muito mais uma tentativa de organizar o caos do que encontrar redenção. Não tenho esperança nenhuma de redenção. Só quero pagar o aluguel do mês seguinte e tentar viver das coisas que eu amo, que são a Literatura, o Cinema e a Filosofia. Eu me lembro de que pouco após o atentado às torres gêmeas em 11/09, li um artigo em que o autor mencionava que, a partir daquele evento, o número de matrículas em academias de ginástica e a busca por alimentos mais saudáveis para o consumo caíram drasticamente. É isso, quando se perde a visão de um porvir, tudo aquilo que nos mantém sãos perde perspectiva, o desespero se instala e a noção de história e processo se esvai completamente. A minha tentativa com esse livro talvez seja entender o que faz com que continuemos. Será que é preciso um evento como o 11/09 para nos tirar a esperança por completo? Ou as pequenas desventuras e os sutis desalentos que experimentamos dia a dia, por estarem diluídos no tempo nos anestesiam para que possamos continuar acompanhando o ritmo da valsa? Ou ainda, são os elementos catárticos, como no meu caso as artes que mencionei, que nos impedem de apertar o botão vermelho?

Seus contos retratam realidades que muitas vezes refletem as vidas de quem os lê. Como você espera que seus leitores se sintam ao enxergar suas próprias experiências no livro?

O impacto no outro é sempre uma questão delicada. É difícil pensar no impacto que quero criar. Parece que assim me coloco acima do leitor e quero conduzi-lo como um títere. Claro que não sou ingênuo a ponto de pensar que o autor, ao empregar uma técnica narrativa, não esteja, de alguma forma, a conduzir o leitor, mas pelos próprios temas que abordo no livro, penso que eu tenha com essa obra menos respostas do que perguntas. Acho que esses contos são, antes de tudo, um convite ao leitor para que tentemos entender juntos os motivos que nos fazem seguir. Se a vida é, como parece tantas vezes, tão cheia de desamparo, dor, sofrimento e desilusão, porque continuamos a pegar nossos trens e metrôs lotados toda segunda-feira?

O título do livro reflete um olhar pessimista sobre a vida, mas também parece carregar uma ironia. De que maneira o pessimismo serve como um meio para revelar verdades humanas universais? E como surgiu a ideia para este título irônico?

O Pessimismo filosófico surgiu como uma resposta ao Otimismo filosófico, (veja como esse jogo de esquenta/esfria do Guimarães serve para tudo), fruto das luzes do século 18. A figura do sábio Pangloss, satirizada por Voltaire em “O Cândido e o Otimismo é o #gratiluz contemporâneo. Um exagero para um dos lados da balança acaba exigindo um contrapeso do outro lado. Então, meu exercício de pessimismo nesse livro talvez seja um combate ao #gratiluz. A ironia do título e a essência por trás dele é o impasse lógico que um pessimismo exacerbado também pode representar. Assim como o otimista imprudente é problemático, o pessimista radical representa também um dilema de ordem prática. A consequência do seu dessabor absoluto pela vida é a extinção dela mesma. É termos uma obra para ler para uma platéia vazia.

Muitos contos são baseados em pequenas tragédias do cotidiano. Você acredita que a dor tem o poder de ensinar ou transformar, ou ela simplesmente faz parte da condição humana inevitável?

A dor tem sim uma função pedagógica. Uma criança que toca o fogo pela primeira vez não necessita de uma segunda oportunidade para tirar sua conclusão. Mas não é o caso de glamorizar a dor e o sofrimento como etapas essenciais e indispensáveis rumo ao sucesso do desenvolvimento humano. Ficar sem sofrer deve ser muito melhor, mas é aí que entra a concretude de um mundo não idealizado. Nele, o que observamos é a inevitabilidade da experiência da dor e do sofrimento humanos. O que a vida quer de nós é coragem. Coragem pode ser uma variante da virtude cardeal da Fortaleza, que é a capacidade de demonstrar segurança nas dificuldades e buscar o bem ainda que diante das adversidades. É uma frase batida, mas não deixa de ser bastante verdadeira: não se forja bom marinheiro em mar calmo.

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