L. Domingos Dalabilia convida leitores a explorar os segredos sombrios de Flamígera, cidade fictícia no interior do Rio Grande do Sul

Luca Moreira
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L. Domingos Dalabilia
L. Domingos Dalabilia

Em sua estreia literária, o advogado e escritor L. Domingos Dalabilia transporta os leitores para Flamígera, uma cidade fictícia no interior do Rio Grande do Sul onde o cotidiano é permeado por traumas, segredos de família e eventos sobrenaturais. No livro Meninos Morrem de Medo, o autor reúne 33 contos que entrelaçam o psicológico e o macabro, criando uma atmosfera de terror que desafia a fronteira entre o real e o imaginário. Inspirado por autores como Edgar Allan Poe e Charles Kiefer, Dalabilia utiliza a escrita para provocar reflexões profundas sobre a natureza humana e seus demônios internos.

O interior do Rio Grande do Sul ganha contornos sombrios nas páginas de Meninos Morrem de Medo. Como surgiu a ideia de transformar um cenário aparentemente cotidiano em um palco para histórias tão intensas e assustadoras?

Macondo é a cidade fictícia de Gabriel Garcia Marques, Oceânia, a de George Orwel, Comala, a de Juan Rulfo, Pau D”arco, a de Charles Kiefer, Gotham é a cidade do Batman…  Stephen King, na construção de seus suspenses, criou várias cidades fictícias no estado do Maine, a exemplo de Castle Rock, Jerusalem’s Lot e Derry, dentre outras.  Aprendi com Charles Kiefer o esquema do P.E.N.T.E., que é uma escolha ou avaliação previa dos Personagens, do Enredo, do Narrador, do Tempo e do Espaço para estruturar o conto. O Espaço o lugar ou principal lugar onde acontecem as histórias. Se colocássemos o nome de uma cidade real  como cenário, poderíamos ferir  ou confundir sensibilidades. Daí que F.L.A.M.I.G.E.R.A me parece um nome que possui muita força, uma certa magia. Dessa palavra podem se derivar várias outras, a exemplo de Lamí (um bairro de porto Alegre), lama, ame, ama, gera, amiga, era, etc. Se for um pouco mais além, Flamígera é a estrela flamejante (de fogo), um simbolismo específico de determinado grau do Rito Escocês da Maçonaria.

A Vila de Flamígera é quase um personagem à parte, com seus segredos e mistérios. O que você acredita que esse ambiente traz de único para a narrativa e como ele reflete as questões humanas abordadas no livro?

A ambientação é peça fundamental em qualquer história. Flamigera, particularmente, me representa luz, resplandecência, um norte, uma estrela a seguir. Paradoxalmente, na minha ficção, no entanto, ela perde esse brilho e passa expressar o lugar das sobras que há em todos nós, seres ambíguos, na maioria das vezes conscientes ou inconscientemente cruéis. Flamígera me serve para explorar temas como identidade, pertencimento e o confronto entre tradição e modernidade.

Seus contos revelam o lado sombrio da natureza humana e colocam o leitor diante de dilemas psicológicos profundos. Na sua visão, como a literatura pode ajudar as pessoas a enfrentarem seus próprios “demônios internos”?

Em Antígona, Sófocles já ensinava que de todas as maravilhas da natureza a maior é o homem. Industrioso e hábil, ele se dirige ora para o bem ora para o mal  a partir de suas próprias escolhas. Estará, portanto, sempre perante um ministério irredutível do seu Eu frente ao Eu dos outros homens. É  na impenetrabilidade do “mistério” do Eu onde residem todas as causas das ações e reações do “ser”,  inúmeras vezes fugindo a razão, mas sempre sempre  a pedir compreensão mesmo que tenha cometido as piores atrocidades.  O objetivo principal de meus contos foi sempre proporcionar prazer  e impactar o leitor para, a partir disso, levá-lo a reflexão sobre a necessidade de combatermos todos os demônios que habitam em nós.

Inspirado por autores como Edgar Allan Poe e Charles Kiefer, sua escrita carrega um tom provocativo e reflexivo. Quais foram os maiores desafios de equilibrar mistério, horror e introspecção nos contos de estreia?

A escolha do tipo de personagem, enredo, narrador, tempo e espaço jamais será um processo fácil. Foi difícil buscar esse equilíbrio e certamente poderia até ser mais bem trabalhado. Optei em escolher – para a maior parte das narrativas – o narrador personagem como protagonista, a fim de criar um laço inquebrantável de empatia e verossimilhança do personagem comigo mesmo, autor, buscando assimilar e incorporar os sentimentos de suspense, introspecção e o tipo de horror psicológico ou sobrenatural que estariam vivendo.

L. Domingos Dalabilia
L. Domingos Dalabilia

Histórias como “Família Amendoim” e “Demônios” lidam com segredos familiares e traumas passados. Na sua experiência, o que torna esses temas tão universais e ao mesmo tempo tão difíceis de abordar?

Além destes dois, eu destacaria também o conto: “Cornos Amarelos”, narrativa feita em 1ª pessoa por um psicopata com fixação na cor amarela, revelando acontecimentos cruéis desde Flamígera até seu momento derradeiro no bairro do Lamí em Porto Alegre. Segredos e traumas do passado são temas universais porque todos nós temos nossos íntimos segredos, aqueles inconfessáveis, e por vezes tão assustadores que se revelados nos fariam ser vistos tal qual o sombrio e assustador “Drácula”, do escritor Irlandês, Bram Stoker, novela publicada há 128 anos, em 1897, que foi uma narrativa lançada por meio de diários, cartas e notícias de jornal que revelava a história de um vampiro que se alimentava de sangue humano em plena Era Vitoriana. Nada muito diferente dos vampiros que hoje vestem-se de grifes e etiquetas e com quem convivemos diariamente.

Você menciona que seus textos podem mudar a perspectiva de alguém sobre determinados temas. Qual mensagem ou reflexão você espera que os leitores levem consigo após mergulharem nas histórias de Flamígera?

O Preconceito existe e deve ser combatido sempre. Penso, no entanto, que o  lugar Brasil em que vivemos, e que é lindo por sua própria natureza, está se tornando um lugar sombrio para se viver, sobretudo a partir do momento em que se “generalizou” a ideia equivocada de que todo homem branco  é apenas um privilegiado, que  já nasceu rico, é um aproveitador, gente do mal, enfim ou que todo preto é um bandido, preguiçoso e  vítima da sociedade, um incapaz de buscar seu próprio espaço no mundo hostil em que vivemos.  Esse maniqueísmo de dividir tudo em “eles e nós” ou “nós e eles”, certo ou errado, sim e não, é o que tem levado a exasperar, aprofundar e até fazer surgir inimizades e uma antipatia recíproca que não existia tão fortemente entre as pessoas, vizinhos e conhecidos.  Noto um sentimento de raiva da situação em si, de parte a parte, um segregacionismo que precisaria acabar.

Meninos Morrem de Medo mistura horror sobrenatural e realidades cruéis da vida humana. Como foi o processo de conectar esses dois elementos de forma que eles se complementassem ao invés de competirem na narrativa?

A mescla do terror psicológico com a realidade cruel da vida humana e as críticas sociais se deu de modo quase casual. Exemplos: Quando percebi, o menino do conto Lâmia estava se referindo ao menino do conto Demônios e vice-versa; o dono do barco de nome “diabo” que leva o menino de Lâmia para afogá-lo dentro do rio é o avô do protagonista de Demônios. Arlinda, do conto “o chá de Arlinda” é cunhada de João o “Homem da Livraria”. O protagonista do guerrilheiro “Juvenal Monteiro” é o avô fantasma do personagem Joaquim (protagonista de “Os Ipês se carregam de flores em agosto”). Notei que o estupro de meninos se dava em “Demônios”, “o menino que não existia” e também em “Cornos amarelo”. Percebi claramente essa mescla quando da primeira análise que fiz do conto “Desesperado”, constatei que a narrativa poderia ser entendida como um discurso político e/ou sociológico e considerei não haver problema algum nisso, pois viver diante das péssimas condições sociais e econômicas descritas pelo protagonista (sem nome) – oriundo de Flamígera – e que perdeu tudo o que possuía em face de decisões alheias a sua vontade, com certeza, foram e sempre serão um “verdadeiro terror”.

Sendo advogado de formação, como a prática do direito influenciou seu olhar sobre a natureza humana e o inspirou a escrever histórias tão densas e provocativas?

Toda formação, de um modo geral, nos ajuda a organizar os pensamentos. Através do direito, desde o início da advocacia, acompanhei e ainda acompanho situações de crianças vulneráveis em Instituições no RS e SP, Vivemos em um mundo de violência de todos os tipos. História, Filosofia, pedagogia e a Psicologia que estou cursando hoje, não são funções apenas contemplativas, elas me oferecem a oportunidade de agir e refletir sobre a própria condição e as ações humanas das pessoas que vejo e passam todos os dias na minha frente. Apenas transporto muitas identidades como sendo de minhas personagens. Tal circunstância acalma o meu espírito e me auxilia desenvolver habilidades como criatividade, paciência e comunicação assertiva.

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