Luiza Fariello lança novo livro abordando luta para confrontar vazios emocionais em relações complexas

Luiza Fariello (Felippe Silva)
Luiza Fariello (Felippe Silva)

A escritora Luiza Fariello, semifinalista do Prêmio Oceanos, lança “Hoje, Deserto”, uma coletânea de 16 contos que explora o peso emocional das vivências humanas. Publicada pela Editora Patuá, a obra destaca temas como maternidade, violência e a luta cotidiana, revelando as complexidades da vida de personagens femininas. Fariello convida os leitores a percorrerem os silêncios e vazios internos que todos enfrentam, em uma narrativa que une sensibilidade e experimentos linguísticos, ambientada em Brasília e outras cidades sem nome.

Como foi o processo de criação de Hoje, Deserto? De onde surgiu a inspiração para explorar o “vazio” e os silêncios presentes nas vidas das personagens?

Acredito que um dos principais desafios depois de escritos os contos, é a tarefa de reuni-los, já que o mero fato de estarem juntos e pertencerem a um mesmo autor não compõe, na minha opinião, um livro de contos. É preciso que conversem entre si, não diretamente, mas de modo a estarem amarrados, a falarem coisas diversas e também a mesma coisa. Esse tema, do vazio e dos silêncios, não foi planejado antes da escrita, mas foi surgindo a partir dela. A cada nova personagem que eu criava, percebia que esse traço ia ficando cada vez mais forte e que eu tinha, ali, um fio condutor para os contos. Percebi que podia explorar o silêncio das histórias e das personagens – deixando sempre margem para o não dito, para aquilo que deve ser formulado pelo leitor, a partir de sua experiência de vida e de leitura -, mas também fazer isso por meio da escolha da linguagem, porque ela é o meu principal instrumento de trabalho. Assim, eu quis explorar não somente o vazio em termos existenciais, como aquele que brota da construção do textos, as pausas, interrupções, inversões sintáticas, uma forma de escrever que pareça natural, mas se preocupe em deixar espaço, em criar imagens não totalmente prontas, em sugerir mais do que julgar e apresentar um veredicto pronto; sou leitora de poesia e isso me ajuda bastante nessa tentativa.

Nos contos do livro, você aborda temas como violência, maternidade e as pressões da sociedade. Como essas temáticas influenciaram sua escrita e a construção das personagens?

Como a maioria das personagens são mulheres – e a minha decisão foi explorar o universo feminino desde o primeiro livro –, alguns temas são quase inerentes a elas. Quando se vai contar a história da perspectiva de uma mulher comum e que vive na atualidade, é quase impossível escapar de temas como a pressão social, o padrão de beleza inatingível, a maternidade e seus mil assuntos, a violência, o machismo. Sendo eu mulher e mãe, também enfrentei e enfrento diariamente tudo isso, de modo que está enraizado no meu cotidiano e na minha escrita. Não creio que a literatura deva ser panfletária, ou seja, ter o intuito de levantar esta ou aquela bandeira, tampouco ter como objetivo levantar determinada discussão. No entanto, é natural que surjam de forma espontânea alguns assuntos e que aflorem a partir daí discussões que são bastante produtivas – a luta que ocorre na escrita, na ficção, reflete sempre a luta da própria vida. Como disse o grande poeta brasileiro Manoel de Barros, “invento para me conhecer”.

Você utiliza experimentos linguísticos em alguns contos, como em “Dentro” e “Fora”. O que te motivou a trabalhar diferentes perspectivas na mesma história?

Fiz no início do ano uma oficina de escrita criativa com a escritora Anitta Deak que me motivou a fazer mais esses exercícios de contar uma história por diferentes perspectivas. No curso, a ideia é que fizéssemos isso para então decidir qual seria a melhor voz para narrar a história, debater o tipo de narrador a partir daí. Foi um exercício que achei muito interessante e levantou questionamentos novos em algumas das histórias que eu já tinha escrito. No entanto, quando fui escrever esses dois contos que se completam (Dentro & Fora e Perto & Longe) eu vi que seria muito útil manter as duas vozes de um mesmo acontecimento ali porque aquilo podia ampliar muito a participação do leitor, que por sua vez teria elementos dos dois lados para escolher a sua versão dos fatos, fazer essa brincadeira de ficar do lado de um ou de outro, escolher quais aspectos acha verídicos e coerentes de cada perspectiva apresentada. Uma das versões é sempre da criança, ou seja, um ponto de vista infantil, mais ingênuo e mais criativo do que está ocorrendo. Já o outro seria o do adulto, uma interpretação digamos mais “normal” dos fatos. E o surpreendente é que os leitores, que são adultos, me contam que se identificam muito mais com o ponto de vista da criança. O que me confirma a ideia de que precisamos sempre nos resgatar de algum lugar em que nos perdemos, nossa vida é mais circular do que podemos supor.

O conceito de “deserto” no livro é bastante simbólico. De que forma você enxerga o deserto interno como uma experiência comum e necessária para o ser humano?

O deserto, no livro, é mais paisagem interna do que externa – embora muitos contos se passem em Brasília, onde a seca é forte. A imagem do deserto foi se consolidando ao longo dos contos, uma imagem que eu acho muito bonita e incrível porque é a beleza que se dá pelo vazio, pelo não dito, pela ausência. Creio que todos temos desertos dentro de nós, espaços em branco que nem sempre temos a coragem de nos deixar habitar. A solidão, que é algo sempre visto como algo triste e depressivo, é diferente da solitude, que é um conceito benéfico de estar só, um estado que propicia a criação e a espiritualidade. O budismo nos fala muito sobre isso, também a yoga, por meio do exercício da meditação, da reflexão. O deserto não deve ser evitado, ele é espaço de autoconhecimento; mas o mundo pós-moderno, contudo, nos põe cada vez mais longe da nossa essência. Infelizmente muitas vezes acabamos nos afastando do tempo presente e nos conectando com o superficial, o que além de um vício é também uma fuga.

Um dos contos, por exemplo, “Ainda estamos longe”, conta a história de uma turbulenta viagem de avião em que uma mulher se vê diante desse vazio, do inevitável mergulho nas próprias memórias. Então acompanhamos o que ela faz diante daquele desespero, da situação incômoda, e a ideia é que nos coloquemos no lugar dela – o que fazemos com nossos vazios?

Luiza Fariello
Luiza Fariello

Em suas narrativas, a mulher é uma figura central, com histórias de luta e resiliência. Qual a importância de dar voz a essas mulheres em suas obras literárias?

Assim como em todas as áreas, também na literatura muitas mulheres foram desvalorizadas e silenciadas. Hoje assistimos a um processo muito bonito de valorização da escrita feminina, de resgate de escritoras a quem não se deu a devida importância em seu tempo. As personagens femininas são reflexo do que ocorre na realidade, porque surgem sempre a partir dela, e para ela retornam na medida em que são lidas e assimiladas pelos leitores. Então creio que é muito importante dar voz a mulheres em suas histórias de sofrimento, preconceito, silenciamento, em tantas violências que sofrem e sofreram em todos os tempos. Ao mesmo tempo, tento não as julgar por suas atitudes e nem as idealizar como heroínas – elas são o que são, e quero que tenham essa liberdade no livro, que o leitor possa sentir isso. Ao mesmo tempo, não acho que isso precise ser algo fixo na minha escrita, a perspectiva feminina. Estou escrevendo um romance que possui um narrador masculino, uma tentativa de explorar outros universos.

Como jornalista e professora de Língua Portuguesa, de que forma sua vivência profissional influencia a sua escrita e a escolha dos temas que aborda?

Muitas histórias surgem a partir de vivências que tive no trabalho porque é impossível dissociar a escrita da nossa própria história – estamos sempre falando de algum lugar que ocupamos no mundo. Como jornalista, convivi com muitas pessoas incríveis e visitei locais muito tristes e que muito me impressionaram, como presídios. Como professora de escola pública, enfrento diariamente alegrias e muitas dificuldades também. Tenho muitos alunos com forte desestrutura familiar e que muito cedo tem que lutar sozinhos para sobreviver. Eu aprendo demais com eles. O conto “Barbie”, por exemplo, foi inspirado em um comentário feito por uma aluna durante a aula, quando falávamos sobre autoestima – ela contou que quando era menor, a mãe dizia que se ela almoçasse direito, ficaria com os olhos azuis como os da Barbie. Ela, uma menina negra, ficava um tempão diante do espelho esperando o milagre acontecer.

O seu primeiro livro, Essa palavra eu não falo, foi semifinalista do Prêmio Oceanos. Como você enxerga a evolução da sua escrita desde essa obra até Hoje, Deserto?

O primeiro livro de contos que fiz, escrito durante dez anos, foi para mim um nascimento como escritora – como é difícil a gente ter a coragem de publicar, de achar que vale ser lido! Escrevo desde pequena e sempre foi para mim uma atividade essencial, a compreensão do mundo, para mim, passa por meio da ficção. Sempre senti um incômodo muito grande em momentos em que, por algum motivo, tive que me distanciar um pouco da escrita. Escrevia sempre que podia, ainda que fosse difícil conciliar com a rotina, era algo que eu precisava fazer. Mas eu guardava tudo na gaveta e às vezes pensava que não chegaria o momento de publicar, que talvez eu não fosse merecedora daquilo. Fiquei muitíssimo feliz em estar na semifinal do Prêmio Oceanos e na final do Prêmio Candango de Literatura – foi um reconhecimento que me incentivou muito.

Nesse novo livro, “Hoje, deserto”, pude me preocupar com outros tantos fatores – tive mais segurança para arriscar diferentes técnicas narrativas, mergulhos maiores. Agora pude me assumir como escritora e isso fez diferença, me deu uma responsabilidade maior. Escrevi com o que tinha à mão, as histórias do dia a dia, que vagavam pela minha memória e que achei que deviam ser contadas. Busquei nos contos alguma poesia perdida nos dias, talvez isso seja importante dizer.

Para você, qual é o papel da literatura em abordar temas tão delicados e complexos, como violência e solidão? Qual impacto você espera causar nos leitores com seu trabalho?

Eu acho que a literatura deve sempre nos provocar, mexer conosco de alguma forma, nos fazer pensar por outros ângulos, em quaisquer temas que aborde. Fico muito grata quando alguém me diz que se identificou ou se comoveu com um personagem, porque se as histórias não são capazes de criar uma ponte com a vida dos leitores, então não valem a pena serem escritas.

O tema da solidão (já de cara no título, que é ambíguo, o deserto como substantivo ou verbo) percorre os contos, as paisagens das histórias. Escrever e ler também são atividades solitárias; não tenho medo de explorar o tema do vazio existencial, nem da violência, embora eu me machuque com isso. Não ter medo é essencial para escrever, porque o processo de autoconhecimento que vem com a escrita é enorme, terapêutico. Há temas, por exemplo, que tenho medo até de pensar, e nesses eu não me aventuro a escrever ainda.

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