Nos dias 10 e 11 de outubro, a Galeria Olido, em São Paulo, recebeu o espetáculo “Formas de Hackear Minha Morte”, criação e performance do artista Marcelo Ferreira. Com apresentações gratuitas, a obra levou ao público uma experiência sensorial e poética, inspirada nas vivências do autor como bixa preta, unindo corpo, memória e espiritualidade em uma narrativa não linear que atravessa dor, fé e renascimento.
Entre dança e performance, o espetáculo se construiu como um ritual de resistência, dando visibilidade a corpos historicamente marginalizados e tensionando a relação entre o íntimo e o coletivo. Com dramaturgia de Paula Salles, coreografia de Claudiana Honório e visagismo de Gil Oliveira, a montagem reuniu uma equipe majoritariamente negra e LGBTQIA+, reafirmando a potência da arte como espaço de reflexão e transformação.
O espetáculo é uma travessia entre corpo, memória e espiritualidade. Que lembrança ou experiência pessoal foi o ponto de partida para esse mergulho tão íntimo?
O ponto de partida vem da minha infância, quando eu dançava nas festas de amigos e conhecidos dos meus pais. Havia ali a honestidade e a ingenuidade de uma criança que simplesmente gostava de dançar e, mesmo assim, por ter movimentos mais soltos, rebolativos, já era motivo para questionarem minha sexualidade. Foi nesse momento que percebi como a pureza e a liberdade de uma criança podiam ser arrancadas apenas por dançar do seu próprio jeito.
Você descreve a obra como um ritual e um testemunho. O que “ritualizar” a própria história representa pra você como artista e como pessoa?
Ritualizar a minha própria história é uma forma de registrá-la e torná-la concreta, de dar corpo e presença ao que, por muito tempo, foi silenciado. É transformar vivência em gesto, memória em matéria, e, assim, afirmar minha existência como artista e como pessoa.

Ao transformar dor, angústia e resistência em cena, o corpo se torna uma espécie de arquivo vivo. O que o seu corpo conta que talvez as palavras não consigam?
Na verdade, penso corpo e voz como uma coisa só, voz também é corpo. Mas escolher não narrar pela fala e deixar que o restante do corpo conte é uma decisão sobre como registrar a mim mesmo, uma forma de provocar o público por outros caminhos. Essa escolha também carrega a memória dos apagamentos e silenciamentos históricos que atravessam a minha ancestralidade, corpos que foram impedidos de falar, mas nunca deixaram de se expressar.
O título “Formas de Hackear Minha Morte” é provocativo. Em que momentos da vida você sentiu necessidade de “hackear” o destino ou reinventar a própria existência?
Acho que “hackear” não é exatamente uma escolha, mas uma tecnologia de existência criada por pessoas dissidentes como eu, que vivem à margem desse sistema e precisam reinventar formas de sobreviver o tempo todo. Talvez não se trate de decidir hackear, mas de tomar consciência desse gesto constante de subversão e criação de novas possibilidades de vida.

A obra nasceu de uma equipe diversa e majoritariamente negra e LGBTQIA+. Como essa coletividade influenciou a estética e a potência política do espetáculo?
Essa coletividade influenciou profundamente tanto a estética quanto a força política do espetáculo. Estar entre pessoas negras e LGBTQIA+ faz com que o processo criativo se torne um espaço de partilha, cuidado e escuta, onde nossas vivências atravessam as escolhas estéticas e conceituais. Até o próprio ato colaborativo, pensar e criar juntos, já é, por si só, um gesto político e transformador.
Você fala sobre abrir espaço para a sensibilidade e a reflexão, e não para o conforto. Que tipo de desconforto ou questionamento você espera despertar no público?
Vivemos um tempo em que apenas o ato de questionar já causa desconforto. Então, o que busco provocar é justamente essa reflexão: de que morte estou falando? Morte de quê e de quem? No meu caso, é a morte simbólica e cotidiana que vivo por ser uma bixa preta no Brasil. Em cena, tento mostrar as formas que encontro para escapar dessas mortes, do silenciamento, da exclusão, da invisibilidade.

Em tempos de tanto silenciamento e violência simbólica, o que significa colocar o próprio corpo — com toda sua história — no centro da cena?
Significa, antes de tudo, hackear a minha morte dentro de um espaço que historicamente não foi destinado a corpos dissidentes como o meu. Colocar o próprio corpo em cena é um ato de enfrentamento e reexistência, é afirmar presença, reivindicar existência e transformar o que antes era lugar de exclusão em território de criação e vida
O espetáculo já percorreu diferentes espaços culturais. O que muda em você a cada nova apresentação, e o que permanece inalterado nessa travessia?
O que mais me transforma a cada apresentação é o público, é incrível perceber e receber as reações de cada pessoa, desde a honestidade espontânea das crianças até as risadas e interpretações do público adulto. Ao mesmo tempo, o que permanece inalterado é o compromisso com a minha própria história e a força do corpo como registro vivo, atravessando cada espaço com a mesma intensidade e verdade.

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