E se a própria história da sua vida não fosse exatamente como você sempre contou? É com essa provocação que o escritor José Eduardo Medeiros apresenta A Amizade e o Tempo, romance que une mistério, drama e reflexões sobre memória e identidade. A trama acompanha Sampaio, um cientista renomado que, prestes a morrer, contrata uma jornalista para escrever sua biografia — mas as entrevistas acabam revelando contradições e segredos que colocam em dúvida tudo o que ele acreditava ser verdade.
Entre recordações imprecisas, paixões e crimes do passado, Medeiros constrói um enredo de ritmo envolvente e final surpreendente, que questiona até onde a lembrança é confiável e o quanto o tempo pode distorcer as narrativas que contamos sobre nós mesmos.
“A Amizade e o Tempo” parte da ideia de alguém contratar uma jornalista para escrever sua biografia – e descobrir, no processo, que talvez sua própria memória o engane. O que o inspirou a explorar essa fronteira entre lembrança e ficção?
A inspiração veio da constatação de que todas as biografias têm uma boa dose de ficção, necessária para tornar a leitura cativante e também para suprir as lacunas da memória e das demais fontes de que se nutre o biógrafo. Essa constatação, inclusive, é citada em mais de um capítulo do livro. Surgiu, daí, a ideia de dar um passo além e tomar por completa a liberdade de misturar a realidade com fatos inventados.
O livro traz um narrador não confiável, o que é raro na literatura brasileira contemporânea. Como foi o desafio de escrever uma história onde a verdade e a mentira se confundem sem perder o interesse do leitor?
As contradições, que trazem dúvida em relação à credibilidade do narrador, são apresentadas de forma bastante gradual e cuidadosa. A cada momento, a história contada se torna mais ou menos plausível, à medida que novos fatos são revelados. O leitor não tem certeza se o narrador está dizendo a verdade ou não. Esse mistério prende o leitor até o final do livro, e é elucidado de uma forma bastante surpreendente.
Sampaio é um personagem marcado pela culpa, mistério e contradições. Você acredita que todo ser humano, de alguma forma, também constrói uma “versão oficial” da própria história?
Acredito que as pessoas são muito diferentes. Algumas são mais transparentes, outras menos. Mas todas, em alguma medida, guardam seus mistérios. Sampaio tem uma personalidade bastante intrigante e misteriosa desde quando era jovem. O trauma do episódio que o deixou paraplégico e o resgate desse passado potencializaram essa tendência, o levando a construir uma narrativa sofisticada em que torna-se possível até mesmo ele estar dizendo a verdade.
A trama transita por Minas Gerais, São Paulo e até pela Grécia. Esses lugares têm algum significado simbólico para você, ou foram escolhas que surgiram naturalmente no enredo?
Minas Gerais e São Paulo são lugares familiares para mim. Nasci em uma cidade do sul de Minas, onde se passa parte da história. Por proximidade geográfica, São Paulo é uma importante referência para aquela região. A Grécia, por outro lado, surgiu naturalmente. A trama demandava um país estrangeiro. Várias referências que foram surgindo na construção da história acabaram me levando à Grécia.

A jornalista Fernanda é quem tenta desvendar quem realmente foi Sampaio. Em algum momento, você se viu como ela – tentando compreender um personagem que parece fugir o tempo todo?
Sim. Fernanda personifica a visão do leitor, suas mudanças de opinião a respeito de qual é a verdadeira história. Mas também passei por isso ao escrever. O final do livro não estava decidido desde o início. As contradições começaram a aparecer, e eu ainda não sabia como a história iria terminar. E o personagem, de fato, me surpreendeu. Entre as possibilidades que se cogita para o desfecho, a que de fato acontece é a que menos se espera.
O título “A Amizade e o Tempo” carrega um peso poético. O que essa relação entre amizade e passagem do tempo significa para você – tanto como escritor quanto como pessoa?
A amizade verdadeira tem um valor inestimável, e é um privilégio preservar amigos ao longo de toda uma vida. Esses dois elementos, que dão título ao livro, são o eixo central da história. Há um vínculo muito forte entre Sampaio e seu amigo de infância. Vínculo que duraria para sempre, não fosse por um trágico episódio. E o resgate dessa amizade, depois de muitos anos, é uma parte muito importante da trama.
O livro mistura amizade, paixão, crime e culpa. Você acredita que a literatura é um espaço onde podemos lidar com nossos próprios dilemas morais de forma mais honesta?
Com certeza. Contanto que a história não seja maniqueísta, os personagens sempre terão aspectos bons e ruins em suas personalidades, e uma atitude condenável, como o cometimento de um crime, é fruto de um conjunto de circunstâncias às quais todos estamos sujeitos. Embora o leitor, em situação similar, talvez não reagisse da mesma forma que o personagem, ele ainda assim sente empatia, compreende e até torce para que o plano criminoso dê certo.
Além de engenheiro e pesquisador genealógico, você agora se apresenta como romancista. Como essas diferentes experiências influenciam sua escrita – e como foi o processo de equilibrar a razão do engenheiro com a sensibilidade do escritor?
Dois aspectos da criação do livro exigem muita racionalidade. Um deles é a pesquisa cuidadosa de cenários, como a ambientação na Grécia. O outro é a precisão no encadeamento dos fatos relacionados ao plano criminoso, quando o livro dialoga com o gênero policial. Mas, nos momentos em que os sentimentos dominam a narrativa, é necessário deixar de lado toda a racionalidade e mergulhar no íntimo de cada um dos personagens.
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