Muito além da sexualidade, o Tantra é, para a terapeuta Fernanda Zorzo, “uma autorização plena do prazer que tem o corpo como meio de transcendência”. Idealizadora do projeto Heaven Tantra, ela vem difundindo essa filosofia em festivais internacionais como o Burning Man e, recentemente, conduziu um retiro imersivo no Rio Grande do Sul, entre os dias 24 e 26 de outubro, reunindo práticas de autoconhecimento, espiritualidade e conexão com o corpo e a natureza.
Com mais de uma década de experiência, Fernanda vem desconstruindo tabus e mitos que cercam o Tantra, mostrando que a prática está muito além de massagem erótica ou rituais de prazer. A terapeuta, que já participou de produções como o reality americano The Retreat USA, aplica o método como ferramenta de cura e reconexão. Durante o retiro, os participantes vivenciaram técnicas tântricas, meditações, rituais xamânicos e experiências sensoriais em meio à natureza, em um espaço projetado para equilíbrio, leveza e introspecção.
Você costuma dizer que o Tantra é “uma autorização plena do prazer”. Olhando para trás, em que momento da sua própria jornada você sentiu que havia se autorizado de verdade a viver o prazer sem culpa?
Seria hipocrisia dizer que houve um único evento que me libertou completamente da culpa em todas as áreas da vida. Mas posso afirmar que, depois do Tantra, eu reconheço com muito mais clareza as amarras que me prendem — culpa, medo, controle — e consigo me libertar delas com mais rapidez. Hoje tenho consciência de quando estou me afastando do prazer, da felicidade e da minha essência.. bem como utilizo de ferramentas como mindfulness e tantra para voltar a vibrar na minha potência máxima mais rápido.
Sua primeira experiência com o Tantra veio ainda na época da faculdade de engenharia. Como foi o choque entre o pensamento lógico da ciência e a entrega intuitiva dessa filosofia? Eles ainda coexistem dentro de você?
Foi um choque enorme — e, paradoxalmente, uma das maiores bênçãos. Acho que essa base lógica foi o que me permitiu traduzir o Tantra de uma forma acessível para todos os meus alunos e até mesmo para os mais céticos.
Nas minhas primeiras experiências, eu estava muito pouco entregue e ainda assim senti benefícios que fugiam completamente da lógica que eu conhecia. E quando comecei a conduzir processos e testemunhar transformações em milhares de pessoas, percebi que não havia mais espaço para o ceticismo — só para gratidão e reverência. Contra fatos, não há argumentos.

Você menciona que o corpo guarda dores e memórias que a mente esquece. Existe alguma história de transformação de um aluno ou paciente que te marcou a ponto de mudar também a forma como você enxerga o Tantra?
A mente tem o papel de nos proteger, então é comum que ela apague ou distorça fatos dolorosos. O que muita gente não imagina é que o corpo guarda essas memórias vivas — e só entende isso quando vivencia.
Lembro de uma mulher que carregava uma ferida profunda de abandono paterno, mas não tinha clareza sobre sua história e como os fatos ocorreram. Durante uma vivência para mulheres, ela teve uma lembrança muito específica — que depois foi confirmada pela mãe, inclusive com a revelação de que o pai que a registrou não era o biológico. Isso foi há mais de dez anos, e ainda me emociono quando lembro.
Há também muitos casos de pessoas que lembram de abusos ou situações mal resolvidas durante as práticas — é forte, mas é também profundamente curador. Gosto de trazer que para outros nao é tão especifico de lembrar, sentir ou reviver uma memória completamente mas ainda sim ocorrem de o corpo liberar essas tensões de uma forma não tão lógica, mas ainda sim fortíssima.
Você perdeu empregos e foi julgada por se dedicar ao Tantra. Hoje, quando vê esse tema sendo abordado em festivais, reality shows e discussões públicas, sente que o preconceito diminuiu ou apenas mudou de forma?
O preconceito diminuiu, mas muito lentamente — e muitas vezes ele só muda de roupa. Hoje existe mais curiosidade, mas ainda há resistência, tanto social quanto institucional. Acredito que quem faz um trabalho sério com o Tantra precisa se unir para difundir essa filosofia da melhor forma possível.
Buscar o Tantra deveria ser visto como um ato de coragem — de quem se dispôs a atravessar as próprias barreiras para se tornar uma versão mais vulnerável, mas também mais autêntica e potente de si mesmo.
Eu gosto de me inserir e conquistar espaços “não tão fáceis”, acho que depois de ter levado o tantra por alguns anos num trabalho de equipe multidisciplinar tanto prático quanto acadêmico com psicólogos, ginecologistas, urologistas, psiquiatras e muitos até PHD me deu muita força para seguir nesse propósito, não só para espalhar essa filosofia que tanto amo e acredito mas também para conseguir desvendar muitas interpretações errôneas a respeito. É sempre um desafio fazer o tantra ser entendido e respeitado em meios em que ainda tem tanto preconceito, mas são justamente nesses que faço questão de inserir, sei que ali moram lacunas em que o Tantra se faz ainda mais necessário.

No Burning Man e em “The Retreat USA”, você mostrou que o Tantra pode existir mesmo sem nudez ou toque. O que isso revela sobre a verdadeira natureza dessa prática e sobre o que as pessoas realmente buscam quando chegam até você?
Revela que o Tantra é muito mais profundo do que a maioria imagina. Ele não é sobre sexo ou nudez — é uma filosofia milenar que trabalha cura, consciência e presença através de diferentes caminhos. Tenho muito orgulho de mostrar isso em espaços como o Burning Man: o Tantra que despede a alma, não o corpo.
Ali eu planto uma semente de curiosidade, confiança e amor — e mostro que o prazer pode nascer da presença, não da exposição.
Sobre o que as pessoas realmente buscam quando chegam ate mim varia muito, muito mesmo. Existem pessoas que conhecem meu trabalho por anos e demorar a “criar coragem” para participar de algum evento até recomendações de profissionais da saúde. Muitos tentam esclarecer logo na chegada que não entendem nada a respeito, que não pesquisaram muito, que tem receios mas nem abrem os seus reais motivos… e sinceramente não é necessário que se externalize porque de qualquer forma vai ser trabalhado exatamente o que é preciso e como deve – ainda que a pessoa saia surpresa de ter ido por um motivo e melhorado em muitas outras áreas da vida que nem esperava. O mesmo para casais.
Você afirmou que “a sociedade não tem interesse em pessoas felizes porque elas consomem menos”. Quando você percebeu que o prazer podia ser também um ato político e não apenas pessoal?
Percebi primeiro em mim. Quando comecei a me libertar das amarras sociais e a acessar um prazer mais interno, minha relação com tudo mudou — comigo mesma, com o corpo, com os outros e com o mundo.
E depois, ao ver o mesmo acontecer com tantas pessoas, entendi o quanto isso é político.
Uma pessoa livre e feliz consome menos, depende menos, se submete menos. O prazer que vem de dentro é revolucionário porque ele é autossustentável.
O tantra desperta um força interna muito bonita, nos ensina a lidar e honrar luz e sombra, amar nossa historia. Se entender como um ser completo e suficiente nos faz melhores para nos e para o mundo, aprender a ser vulnerável, se acolher mais.. tudo isso reflete em buscar menos “soluções” rápidas e superficiais. Não é um bom negocio para o capitalismo, mas é um ótimo negocio para uma sociedade mais equilibrada e saudável.

O retiro “Montanha da Lua” mistura tradições tântricas, xamânicas e indígenas. Que tipo de transformação você espera provocar em quem participa — e o que esse encontro representa na sua própria trajetória?
Esse retiro representa uma nova fase do meu trabalho, onde trago o Tantra como uma fonte de saúde, bem-estar e felicidade. Misturo práticas que não só eu estudei sobre mas também me transformaram ao longo da última década, trago elas com uma abordagem mais natural, mas ainda assim intensa.
As tradições xamânicas que incluo são sem o uso de substâncias, mas extremamente potentes. O Temazcal, por exemplo, é uma vivência profundamente purificadora — ele resgata o contato com a terra e o corpo, com humildade e força ao mesmo tempo. Este ano fui a Tepoztlan no México para ter uma experiência exclusiva em um Temazcal com um Xamã lá, se eu ano acreditasse no poder e transformação dessa experiência eu nao teria ido tão longe para isso e muito menos adiconado no roteiro do retiro que vou conduzir.
Vejo muitos profissionais de diferentes áreas tentarem defender como bom só aquilo que eles fazem, eu tenho humildade e experiência para agregar tudo que vai somar no resultado: não é sobre mim, é sobre transformar da melhor forma as vidas que vão estar nas minhas mãos naquele período.
Para quem ainda enxerga o Tantra com desconfiança, qual seria o primeiro passo — o gesto mais simples — para começar a se reconectar com o próprio corpo e transformar prazer em autoconhecimento?
O primeiro passo é buscar experiências conduzidas por profissionais que priorizem o bem-estar e a segurança emocional dos participantes — não apenas seguir protocolos.
Quando se trata de sexualidade e vulnerabilidade, o essencial é haver acolhimento, respeito e liberdade.
Nada é obrigatório no Tantra verdadeiro. O único convite é à presença — com o corpo, com a respiração e com o sentir.
Um primeiro passo é reconhecer que se tem um lindo caminho cheio de possibilidades, que o convite é autorização plena do prazer e ser sua mais feliz versão. Sem medos, culpas ou julgamentos… Não compare sua jornada com a de ninguém, se convide a viver mais plenamente o presente. Ter uma boa condução nesse processo deixa ainda mais potente e prazeiroso.
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