Na cena inicial de “Estrada dos Refúgios”, a escritora Bettina Winkler estabelece um tom forte, intenso e misterioso. Ao perceber a ausência da irmã do meio, Bárbara, seus instintos alertam-na sobre a necessidade de ajuda. A busca ao lado da irmã mais nova, Ira, revela uma perturbadora situação de abuso sexual que se transforma em agressões físicas, culminando na morte do agressor, Maurício.

A partir desse ponto, todos os eventos desencadeados colocam em xeque a identidade do pai adotivo das três protagonistas, Bernard Gastrell, um ex-serial killer britânico conhecido na pacata cidade do interior como “O Justiceiro”. Conforme novos assassinatos emergem na trama, o leitor percebe que até mesmo os laços sanguíneos não são suficientes para proteger uma família como essa. Neste suspense nacional, publicado pela Qualis Editora, a autora destaca a influência marcante da cultura nordestina, especialmente da Bahia, seu estado natal e residência atual.

Ao introduzir elementos como a pracinha de chão de pedra, os caminhos de terra batida e até mesmo as jaquetas verde-cana usadas por mototaxistas, Bettina Winkler desafia a supremacia dos cenários e características estrangeiras presentes em obras de suspense, oferecendo um enredo mais próximo e envolvente para o leitor brasileiro.

“Estrada dos Refúgios” começa com uma cena intensa. Pode nos contar mais sobre o que inspirou essa abertura impactante do livro?

A cena do prólogo foi, na verdade, a última parte do livro que escrevi porque foi ideia da minha agente maravilhosa, Mariana dal Chico. Ela me apresentou a ideia para que o livro já começasse com mais ação, além de dar um tom mais forte para a história e, acho que se encaixou perfeitamente. A cena é um acontecimento que, infelizmente, é bem corriqueiro. Muitas mulheres já passaram por algo parecido.

A trama envolve temas sensíveis, como abuso sexual e violência. Qual foi a sua motivação para abordar esses temas na história?

Como eu disse, é bem comum na nossa sociedade que as mulheres passem por esse tipo de coisa, então a ideia foi aproximar da realidade brasileira, trazer identificação e, ainda, de certa forma, fazer um alerta e criar conscientização sobre abuso e violência contra as mulheres.

O livro destaca a influência da cultura nordestina, principalmente da Bahia, onde você nasceu. Como a cultura local desempenha um papel na narrativa?

A cidade de Estrada dos Refúgios é praticamente um personagem nessa história, ela tem sua própria personalidade e muito disso vem carregado da cultura baiana e nordestina que conheço e vivo. Para mim foi muito importante criar personagens que amassem comer feijão com farinha, falassem “véi” e “barril’ porque são coisas que só a nossa literatura nacional pode oferecer e que os baianos podem se identificar, assim como o resto do Brasil pode se dispor a conhecer.

Bernard Gastrell é um personagem complexo. Ele é um ex-serial killer britânico que se tornou “O Justiceiro”. Como você desenvolveu esse personagem e o que o motivou a criar alguém com esse passado?

Não sei muito bem descrever como é minha relação com a criação de personagens porque eles só aparecem, quase prontos, na minha cabeça. Costumam se o pontapé inicial que me inspira a criar toda a narrativa. A primeira cena que me veio na mente foi das três meninas sendo gritadas por ele por terem trazido um corpo para casa sem ter o cuidado necessário para que não ligassem o crime a elas, então foi tudo muito orgânico. Eu amo filmes, séries e livros de suspense, então a imagem de Gastrell surgiu de várias referências que foram se aglomerando em minha cabeça e a partir daí imaginei algo tipo “imagina esse cara aqui na Bahia”. Além disso, eu queria provocar os leitores a se apegarem a um personagem que clama estar fazendo a coisa certa e justa mesmo que para isso tenha que fazer atos impiedosos, é ambíguo, é moralmente duvidoso, tem uma linha fina que divide até onde Gastrell está certo e é isso que faz ser especial.

A narrativa do livro faz uma reviravolta com outros assassinatos. Sem dar muitos spoilers, como essas reviravoltas afetam o enredo e os personagens?

Essas reviravoltas afetam principalmente a visão de Bárbara, a protagonista, sobre os outros personagens. Ela guarda um segredo que ninguém sabe, então, o que impede os outros de terem segredos também? A confiança inabalável dela nas irmãs e no pai começa a oscilar e ela também desconfia ainda mais de outras pessoas também.

Bettina Winkler

Você mencionou o uso de elementos locais, como a pracinha de chão de pedra e as jaquetas verde-cana. Como esses detalhes ajudam a criar um senso de autenticidade na história?

Se eu falar de uma história de suspense ambientada no interior da Bahia, provavelmente você terá poucos títulos para me oferecer (aceito indicações!), então nada mais justo do que mostrar com elementos como seria, de verdade, uma história de suspense ambientada numa cidade como Estrada dos Refúgios. No cotidiano isso é muito comum, as pracinhas de chão de pedra são um clássico, que até em Salvador, que é capital, você acha, assim como a jaqueta dos mototaxistas e outras coisas.

A história envolve a relação entre as irmãs Bárbara e Ira. Como essa relação se desenvolve ao longo do livro?

São três irmãs, Bárbara, Karma e Ira, e para além dos assassinatos, elas têm uma relação muito típica entre irmãs com idades próximas, como intriga, ciúme, mas também proteção e amor incondicional. Bárbara faria qualquer coisa para proteger as outras duas, mesmo que elas fizessem algo muito absurdo. Afinal, a própria Bárbara já fez algo tenebroso e precisou ser protegida por Gastrell. Ao longo do livro, essa fraternidade delas, que já é muita, só aumenta porque os acontecimentos sangrentos só fazem a família ficar mais unida, até porque elas só podem contar umas com as outras no fim do dia.

A trama está ambientada em uma cidade de interior. Como esse cenário influencia os eventos da história?

Como eu disse, a cidade é quase um personagem na história, então tem coisas que são clássicos de cidade do interior como o fato de a cidade inteira ficar sabendo das coisas muito rápido, a informação se espalha de boca em boca; tem também locações importantes como o rio perto da casa das meninas, cenário de muitas cenas importantes. Além disso, os personagens moram perto uns dos outros e das locações-chave. São muitas coisas que só são possíveis porque são em Estrada dos Refúgios, que mesmo no tempo atual ainda tem, de certa forma, um acesso remoto, permitindo que, por exemplo, um ex-serial killer que foi mundialmente famoso não seja reconhecido.

Como escritora de suspense, qual é o seu processo para manter os leitores intrigados e ansiosos para virar as páginas?

Acredito que personagens cativantes são a chave para manter os leitores vidrados, porque eles querem – ou não – que seus favoritos sejam inocentes, ou que fiquem vivos, querem saber o que vai acontecer com eles. Além disso, a atmosfera de suspense ajuda a manter a curiosidade, é tudo meio que pela “vibe”.

“Estrada dos Refúgios” é uma obra nacional em um gênero muitas vezes dominado por autores estrangeiros. Como você vê o espaço para autores brasileiros no cenário do suspense?

Nós, autores nacionais, temos uma oportunidade incrível de criar narrativas originais explorando nossa cultura e nosso país. Acredito que o mercado está cada vez mais aberto para a literatura nacional (ainda bem!), e pode expandir ainda mais já que estamos criando e disseminando histórias que são diferentes do que estamos acostumados a consumir. Do ponto de vista de mercado, é uma brecha a preencher com histórias originais. Tem muita literatura nacional de suspense de qualidade por aí e isso vem crescendo cada vez mais.

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