Beatriz Oliveira é a atriz surda oralizada que interpreta a personagem Pórcia na novela “A Infância de Romeu e Julieta”, no SBT/Amazon. A personagem faz leitura labial para entender o que as pessoas dizem e se comunica em libras ou por escrito. Beatriz foi diagnosticada com otosclerose, aos 17 anos de idade, momento em que passou a perder a audição. A partir daí, passou a utilizar aparelho auditivo e a aprender Libras para se inserir na comunidade surda. O teste para o papel de Pórcia, para o qual Bia concorreu com atrizes sem problemas de audição, foi realizado com bastante segurança por conhecer com muita propriedade o universo que envolve a personagem.

Pórcia mora com o pai, Fausto (André Mattos), que depende dela para realizar as tarefas da casa e para dividir as contas. Ela é muito inteligente, sonhadora, cuidadosa e empática. Pórcia ama livros e tem como autora preferida Jane Austen, tanto que um dia quer morar na Inglaterra para saber como é o lugar que conhece das páginas dos livros. Fausto é mal-humorado com a vida, tenta proteger a filha de tudo, e acaba privando-a de ser plenamente feliz. Bassanio (Lucas Salles), par romântico de Pórcia, é o oposto de Fausto. Ele é um rapaz bonzinho, amoroso e atrapalhado que incentiva Pórcia a sonhar e realizar seus sonhos.

Beatriz enfrenta desafios diários por ser uma atriz negra, surda e vinda da periferia. Ela já está no meio artístico há 8 anos e “A Infância de Romeu e Julieta”, vencedora na categoria “Melhor Novela”, no Prêmio Jovem 2023, foi sua primeira chance de atuar em uma novela.

Nos tempos de escola, Bia nunca foi boa aluna em Matemática, química e matérias afins. Nas matérias de Humanas, português, geografia e história tinha um bom desempenho, mas seu talento era mesmo para as aulas de artes e de educação física. Como foi criada pela mãe, e é filha única por parte de mãe, desde cedo inventava mundos imaginários, cenários, danças, músicas para não se sentir sozinha. A arte já atravessava seu caminho enquanto queria entender a verdade fictícia que via na TV e experimentava a companhia de suas criações. Ao decidir que realmente este seria o seu caminho, foi buscar oportunidades, fez cursos, e está sempre querendo se aperfeiçoar.

Em meados de 2011, ingressou no grupo de teatro amador ABC (Arte dos Bons Companheiros) com quem apresentou espetáculos pela região da zona leste de São Paulo. Os processos criativos do grupo eram colaborativos, e neles todos atuavam, dirigiam e escreviam. Com o fim do grupo em 2015, começou a fazer aulas de dança na Fábrica de Cultura, e em seguida entrou para o Núcleo Luz, uma das melhores escolas de dança contemporânea e Ballet clássico de São Paulo. Nessa época, Bia também se arriscou no curso intensivo de modelo da HDA, voltado para pessoas negras. Em meados de 2020, entrou para a SP Escola de Teatro, onde se formou em 2023. A peça, realizada para a formatura, “O Último Baile”, dirigida por Gabriel Duarte, resultou no convite para a turma ficar em cartaz, no Espaço Parlapatões, às sextas feiras de setembro.

Sempre buscando espaço para trabalhar, Bia conquistou, antes do papel em “A Infância de Romeu e Julieta”, trabalhos no cinema, em publicidade e nas plataformas de streaming. Em 2022, a atriz foi Rayane, uma das protagonistas do filme “Escola de Quebrada”, uma produção da Kondzilla em parceria com a Paramount, com direção de Kaique Alves. Em seguida, protagonizou “Lapso”, um curta metragem realizado em Belo Horizonte, dirigido por Carolina Cavalcanti, que recebeu diversos prêmios como, dentre outros, o de Melhor Filme Curta-metragem pelo Canal Brasil, o prêmio dos 10+ favoritos, pelo júri popular, no 34º Festival Internacional de São Paulo – Curta Kinoforum, em 2023, além do Melhor filme, na Mostra Competitiva Nacional, pelo júri popular, no 25° Festival Kinoarte. Bia também participou da terceira temporada da série Unidade Básica, da Globo play e Universal TV, dirigida por Suzy Milstein, no papel de Gislaine, em que contracenou com Caco Ciocler (Dr. Paulo), Ana Petta (Dra. Laura) e Teka Romualdo, no papel de sua mãe.

Para construir sua personagem em “A Infância de Romeu e Julieta”, Beatriz se inspirou em princesas da Disney: a Bela, de “A Bela e a Fera”, apaixonada por livros como Pórcia, e a Princesa Tiana, a primeira princesa negra de animação da Disney, protagonista do filme “A Princesa e o Sapo”, porque é delicada, dedicada e esforçada como Pórcia. Como artista, Bia cita suas inspirações: Lázaro Ramos, Dercy Gonçalves, Aílton Graça, Ruth de Souza, Viola Davis, Joaquin Phoenix, dentre vários outros.

Coincidentemente a perda progressiva da audição ocorreu quando Beatriz fez sua escolha de vida na arte. Ela notou a perda auditiva quando buscava uma vaga para participar do curso de formação em dança no Núcleo Luz. Bia passou na audição para estudar na escola apenas seguindo a vibração no chão. Para compensar esta falta da escuta, foi necessário aguçar outros sentidos, ter um olhar mais atento para si e ao redor. A entrada no universo da arte impulsionou esta busca de uma sensibilidade maior e, hoje, aos 26 anos, a atriz desbrava oportunidades para se impor no mercado.

Como foi sua transição do grupo de teatro amador ABC para a SP Escola de Teatro e como essas experiências impactaram sua jornada como atriz?

A transição demorou para acontecer porque, depois de sair do ABC, eu fiquei muito tempo afastada do teatro e da arte no geral para me dedicar a um trabalho CLT. Então quando eu saí do grupo, em meados de 2015, me desconectei do teatro e só voltei em 2020.  Foi como aprender a falar de novo. Eu tinha bases e conhecimentos passados do grupo, mas uma instituição como a SP está em outro nível. Então foi como recomeçar do zero, de certa forma, foi um choque, mas um choque bom, que te acorda mesmo.

Diante dos desafios diários como atriz negra, surda e vinda da periferia, como você enfrenta e supera as barreiras para garantir um espaço no meio artístico?

Eu sinto que, às vezes, em relação as barreiras, eu só tento dar o meu melhor para de alguma forma poder escalar essas barreiras. E quando eu consigo quebrá-las, eu me dedico muito ao que me proponho a fazer porque eu sei que preciso fazer cinquenta vezes melhor do que o outro por N questões. Então, me dedicar, me esforçar, é uma das minhas táticas para enfrentar essas barreiras.

O que a inspirou a abraçar a carreira artística e como você enxerga o papel da arte na representação e visibilidade de diferentes grupos na sociedade?

⁠A arte foi algo que me encantou desde criança. Se eu falar um que houve um momento exato em que me apaixonei pela atuação, pela dança, ou pelo canto, ou que vi algo que me inspirou e eu decidi que seria aquilo, eu vou estar mentindo, porque eu só fazia das minhas fantasias de criança algo real. Cantar na sala, brincar de faz de conta, e dar verdade para tudo que eu estava fazendo na brincadeira, desde chorar até sorrir de felicidade, ou inventar coreografias, passos de dança, era só como se eu estivesse sentindo tudo de forma verdadeira e isso me preenchia. Com o tempo, eu fui entender que queria aperfeiçoar isso e fui atrás dos cursos, mas não sei dizer ao certo se houve de fato algo que me inspirou. Eu só queria fazer. E sobre representação e visibilidade dos grupos na sociedade, eu tenho para mim que a arte tem um papel de base, de direcionamento. Quando falamos de grupos dentro da sociedade, estamos falando de singularidades, de pessoas diferentes, e a arte permite que pessoas diferentes do mundo todo sejam vistas, ouvidas e sentidas. E isso é único.

Em qualquer que seja a vertente, desde a pintura até a dança, ser lido, ouvido, sentido, é um ato de aprendizado e isso é um ato político, aprender. Por isso tenho para mim que a arte é a base fundamental.

Pórcia, sua personagem em “A Infância de Romeu e Julieta”, tem uma relação íntima com livros e aspira conhecer a Inglaterra. Como você se identifica com essa ligação com a literatura e com a busca por novos horizontes?

Me identifico muito. Primeiro, porque eu amo ler, assim como a Pórcia, e segundo, porque estar num lugar novo e diferente proporciona experiências novas e eu amo isso. É quase como se ler e ir a um lugar novo fossem a mesma coisa, mas a leitura é uma experiência imersiva e ir a um lugar novo é uma experiência imersiva em 4D. Eu sempre fico muito empolgada e entendo o tanto que a Pórcia ame a leitura. Como ela não pode e não tem condições de sair de um lugar para o outro, ela se aventura pelos livros e na vida apenas imersiva para um dia, talvez, ter a experiência em 4D e poder tocar em tudo que leu.

Como você se preparou para interpretar sua personagem em “A Infância de Romeu e Julieta”? Quais foram os maiores desafios e aprendizados nesse processo?

Eu me preparei através do estudo, leitura, curso de Libras, indo a lugares e conhecendo pessoas surdas como eu, assistindo filmes e séries que falam de pessoas surdas como eu, e me familiarizando aos poucos.  Porque, apesar de ser surda, eu não me reconhecia assim. Quando comecei a pesquisa para fazer a personagem, apesar de já saber libras, eu não tinha conhecimento e bagagem da comunidade surda porque eu estava trabalhando e estudando, então não tinha tempo. Eu tinha noção da minha perda auditiva, mas eu não me identificava como pessoa surda. Quando consegui conhecer pessoas da comunidade, que se tornaram minhas amigas, passei a ter um suporte nesse processo. A partir daí, é que fui entender que eu era uma pessoa surda e aceitei essa identidade para mim. Então, posso dizer que, inicialmente, foi difícil me encontrar como uma pessoa surda e acessar outras pessoas surdas para fazer esse laboratório para o papel da Pórcia.

Como é o seu processo criativo ao construir personagens e quais são suas principais fontes de inspiração na construção de uma nova personagem?

Quando eu recebo uma nova personagem, eu gosto de escrever sobre as qualidades e defeitos dela, gosto de pensar o que ela escuta, como ela se veste, se porta, como ela anda, como ela pensa, o que ela come, o que ela não gosta de comer, quais são seus medos e suas seguranças, como ela vê o mundo, qual é o objetivo dela. Se ela tem um grande objetivo, quais são, e a partir disso eu vou dando vida, vou estudando aos pouquinhos…  É quase como montar um quebra cabeça, aos poucos, eu vou fazendo acontecer. Tenho muito como base o método de Stanislavski. Ele é uma inspiração na hora que vou criar.

Você mencionou inspirações como Lázaro Ramos, Viola Davis e outras figuras. Em que aspectos esses artistas influenciam sua abordagem na atuação?

⁠Eu tenho muita admiração pelo trabalho desses artistas porque me choca muito como eles conseguem trabalhar a verdade cênica tão bem. Por exemplo, o Lázaro Ramos tem uma presença física nas cenas que se propõe a fazer, que é impossível assistir algum filme dele e conseguir tirar os olhos. Eu sinto que é um trabalho criativo tão minucioso que nenhum detalhe de expressão, voz e corpo escapa do trabalho dele. Eu sou muito fã de filmes que me transmitem verdade, amor, paixão, porque eu me apaixono junto. E o trabalho de todos esses atores que eu citei, assim como o do Lázaro Ramos, eu quero saber fazer igual um dia! Rs.

Em sua opinião, como a representação de personagens surdos na mídia pode impactar na percepção do público em relação à comunidade surda e suas questões?

Eu acho que deve impactar de forma muito positiva como tem feito. A personagem da Pórcia é um exemplo de que as pessoas querem conhecer mais e mais a comunidade surda e aprender Libras. E isso é ótimo, no meu ponto de vista, porque quebra essa barreira de excluir um grupo porque outro não sabe como se comunicar com ele. Eu espero ver mais e mais papéis assim, e assuntos como este sendo pautados, para que o público ouvinte se sinta convidado a aprender mais sobre nossa Língua e nossa comunidade. Cria-se um lugar de comunicação com respeito.

Além de atuar, você teve experiências no cinema, publicidade e em séries. Como esses diferentes formatos influenciam sua abordagem à atuação e à criação de personagens?

Acho que de certa forma o trabalho com a publicidade me ajudou a perder a vergonha das câmeras, e o cinema me ajudou a me sentir livre para experimentar minhas ideias para a personagem. De certa maneira, acho que todo trabalho que faço, seja no cinema, na publicidade ou na TV, me ensinam uma coisa coisinha nova aqui, e outra ali. Por isso, não consigo citar, mas sinto como se todos estes formatos fossem uma grande escola em que estou sempre aprendendo algo.

A perda auditiva que enfrentou coincidiu com sua escolha de vida na arte. Como essa jornada de descoberta e superação afetou sua abordagem à arte e à interpretação?

Para ser bem sincera, essa questão da perda auditiva quase me fez desistir da arte, que eu já amava desde pequena, mas achei que por passar a não escutar, eu não ia conseguir mais dançar, atuar ou cantar. No entanto, foi totalmente o contrário e eu só tive esse pensamento porque não tinha conhecimento nenhum sobre ser uma pessoa surda. Quando eu finalmente entendi que uma coisa não tinha nada a ver com a outra, e que na verdade a surdez só iria potencializar a arte na minha vida, eu pude esquecer a ideia de desistir do que eu amava. Quando eu digo que potencializou, estou querendo dizer que eu pude despertar outros sentidos, como o visual, o que foi incrível porque eu passei a olhar para as coisas com mais cuidado e isso para um artista é precioso.

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