Heróis dúbios, por que existem? e aonde nos levam

Por volta de uma ou duas semanas atrás houve o anúncio de uma adaptação animada da história Injustiça – Deuses entre nós da DC Comics, uma das maiores empresas no meio dos quadrinhos e pioneira dos super-heróis com suas capas elegantes e cuecas por cima da calça. A dona de heróis que hoje em dia são símbolos eternizados da cultura pop, cerca de oito anos atrás trabalhou em conjunto com a NetherRealm Studios para a produção de uma história. Uma história que acabou sendo contada em dois jogos e diversos quadrinhos lançados ao longo dos anos, mostrando como o primeiro super-herói da história, Superman, tornou-se um tirano num universo alternativo em que perdeu sua esposa, Lois Lane.

Capa do primeiro jogo da Duologia

Quando li essa notícia de primeiro momento fiquei feliz, mas não demorou muito para minha felicidade ser substituída por uma percepção dum incômodo crescente meu. Um incômodo que gerou uma reflexão, provavelmente não muito popular. Ainda assim, usufruindo da minha liberdade de expressão que eu venho trazer essa reflexão para quem estiver interessado. Então antes de irmos pra reflexão, vamos explicar algumas coisas:

! Spoilers das três séries do subtítulo a frente, prossiga por sua conta e risco !

The Boys, Invincible e jupiter’s Legacy

Lançadas respectivamente em 26 de julho de 2019, 25 de março de 2021 e 7 de maio de 2021. The Boys, Invincible e Jupiter’s Legacy são três séries atuais, duas sendo lançadas esse ano inclusive, que contam histórias mais realistas e com contextos mais maduros em universos habitados por heróis bem nos moldes de universos consagrados como o da DC Comics e da Marvel Comics. Tais séries são baseadas em quadrinhos de nomes homônimos lançados inicialmente nos anos de 2006, 2003 e 2013, alguns mantendo publicação até fevereiro do ano passado.

Em suas tramas que são amplamente diferentes em milhares de aspectos (Foco, abordagem e etc), encontram-se algumas similaridades. Dentre as mais notáveis estão as figuras de poder supremo e caráter duvidável encarnadas em heróis cujo qual o arquétipo de poderes, simbolismo ou até mesmo de história remete ao primeiro herói do mundo, Superman.

Em The Boys temos o Capitão Pátria, um assassino sanguinário e sociopata capaz de manipular massas com seu discurso patriótico enquanto passa uma imagem de bom moço.

Em Invincible temos o Omni-Man, um enviado de uma raça alienígena com o objetivo de conquistar a Terra que mata os principais guardiões do planeta sem remorso enquanto esconde de todos, incluindo de sua família terráquea constituída no seu tempo de infiltrado.

E em Jupiters’s Legacy temos o Utópico, um herói antigo que mantêm uma contínua negligência pra escutar as necessidades de uma comunidade heroica mais jovem que o mesmo, algo que acaba gerando a morte de alguns deles.

Sejam pessoas mais do bem ou do mal, esses três e milhares de outros são releituras do já citado Arquétipo Superman. Tais personagens existem como uma forma de autores que não detêm os direitos do Superman poderem brincar com suas ideias originais de mundos onde o Superman não é um herói tão puro quanto pensamos, se não um assassino hipócrita e falso moralista como crítica, paródia ou simples curiosidade demonstrativa. Para alguns essa ideia deve ser bastante nova, entretanto, já temos mais exemplos do que dedos na mão de não só personagens ao qual se utilizam desse arquétipo. Como de outros para serem utilizados em obras subversivas/críticas geralmente direcionadas a própria mídia de heróis que hoje em dia se estende além de um gibi.

A era em que se iniciou

Essas releituras e a própria premissa de um mundo de heróis mais real e verossímil perpetua já tem muito tempo. Os quadrinhos de heróis estadunidenses com seus vários anos de existência já passaram por diversas eras, mudando sempre seus formatos e temas conforme lei e desejo popular.

Capa da primeira Action Comics, Era de Ouro (1938 – 1952)

A era de ouro foi o inicio de tudo para os heróis. Baseados em mitologias ou conceitos lúdicos de todo o tipo, vestindo roupas excêntricas referenciando circenses em uma alusão ao fantástico. Foi daqui que surgiram alguns dos conceitos mais firmes e “antiquados” de liberdade e justiça que heróis como cidadões ideais iriam proteger e almejar por anos, ainda que tratassem de assuntos sérios (Guerra e afins) por conta da época complicada em que encontravam-se.

Capa revelação do novo Flash (Barry Allen), Era de Prata (1953 – 1974)

A era de prata é marcada por um inicio conturbado decorrente de códigos de publicação que passaram a vigorar em virtude de proteger a inocência de milhares de jovens que supostamente eram influenciados pelos quadrinhos para que cometessem atos de malcriação. Com isso iniciou-se uma era em que quadrinhos tentavam reinventar-se ao máximo em moldes leves para evitar problemas de censura. Algo que acarretou na super valorização de histórias com termos científicos (Espaço, Radiação Gama, Outras Dimensões…) e de equipes super heroicas. Tal era gerou grandes frutos trazendo heróis inesquecíveis a vida, como o Homem-Aranha. Além de diversas equipes aos quais ainda conhecemos: Quarteto Fantástico, Liga da Justiça, Vingadores e X-Men.

Capa de Lanterna Verde e Arqueiro Verde numa história em que o ajudante do Arqueiro (Ricardito) estava viciado em drogas, Era de Bronze (1975 – 1985)

A era de bronze foi um momento em que o quadrinhos já restabelecidos e livres do abraço frio da censura, iam de encontro a uma fusão entre seus dois períodos anteriores. Trazendo heróis enfrentando ameaças de todo tipo, em histórias as vezes mais leves e as vezes mais maduras, e ainda com a introdução de novos temas da época que vinham em alta como racismo e drogas. Algo que pavimentou o caminho para o momento em que nos encontramos em que eu darei espaço para essa reflexão.

Personagens modernos para uma era moderna

Seguindo o curso natural de evolução acabamos por chegar na conhecida era moderna. Uma era que se estende desde os meados dos anos 80 até os dias atuais. Os frutos da era de bronze trouxeram a verdadeira fusão do mais antigo e mais novo, criando mundos heroicos divididos em épocas simplesmente com seus personagens que colidem uns com os outros e até consigo mesmos. Podendo trazer a tona o melhor, ou o pior de si mesmos. Um exemplo bem literal disso é a mega saga Crise nas Infinitas Terras.

Uma vez que os heróis estão de peito aberto para múltiplas realidades de escrita, é onde surge ou ao menos aonde são popularizadas as releituras e revisões de heróis clássicos das histórias em contextos mais complexos e violentos quanto possível. Um exemplo sendo O cavaleiro das trevas, de Frank Miller. Também surgindo ideias inovadoras e jamais vistas como Sandman, de Neil Gaiman. Para muitos isso elevou o nível da nona arte em graus estratosféricos, de forma que hoje em dia ela caminha livre nos rumos aos quais o público desejar tomar.

No entanto, é aqui que relembro o fato de que eu teria uma opinião dita como impopular. Eu adoro o fato como os quadrinhos moldaram-se ao tempo e desejo dos consumidores, entendendo como cada vez mais as pessoas precisavam de heróis com características mais humanas e errôneas para que não precisassem consumir mais de 50 gibis do Superman em busca de uma prova que ele ainda é humano. Ou ao menos erra de alguma forma para que não percebamos ele num verdadeiro patamar inalcançável de perfeição.

Ainda assim, chegamos num nível atualmente em que por maior que seja meu amor por revisões de personagens já consolidados. Não há como negar que as coisas já saíram do nível de uma simples desconstrução ou revisão do tema heroico. Séries como The Boys, Invincible e Jupiter’s Legacy possuem independência para com sua característica de releitura, sendo não só uma reavaliação de todo um tema. Elas acabam sendo pioneiras do seu próprio jeito de contar uma história, como ninguém antes contou. Algo maravilhoso, mesmo embora perigoso na pequena instância que é o motivo desse texto.

Faz anos já que a imagem de figuras de caráter duvidoso tem transformado-se em supostos símbolos de rebelião para grupos de caráter mais duvidoso ainda. Como por exemplo a figura do Justiceiro.

Frank Castle, mais conhecido como Justiceiro é um homem que motivado pela morte de toda sua família nas mãos dum mafioso dedica toda sua vida a combater o crime de maneira brutal.

Capa de um quadrinho do Justiceiro

O Justiceiro assim como diversos outros personagens foi criado nas palavras de um de seus próprios criadores como uma crítica a hiper-violência e a vigilantes do mundo real, mas que acabou adotado de maneira muito controversa por grupos extremistas como os invasores do capitólio em Washington, DC. Vendo o uso errôneo do símbolo e má interpretação da origem do personagem, um de seus criadores, Garth Ennis, disse o seguinte numa entrevista ao SYFY WIRE:

“Eu já disse isso outras vezes, mas ninguém quer ser o Justiceiro. Ninguém quer ir três vezes para uma zona de combate com a última dando catastroficamente errado, voltar com uma cabeça cheia de vidro quebrado, ver sua família ser alvejada por uma metralhadora até virarem miúdos sangrentos na sua frente e então dedicar o resto de suas vidas a viver em um massacre frio, desolador e sem coração”.

 

“As pessoas usando o logo nesse contexto estão enganando a si mesmas, assim como os policiais que estavam usando no verão. O que eles querem é usar um símbolo aparentemente assustador em uma camiseta, mostrar que mandam por ai, então voltar para a casa para sua esposa e crianças e continuar suas vidas cotidianas. Eles não pensam sobre o símbolo do Justiceiro mais do que os idiotas que eu vi na quarta-feira, aqueles abanando as estrelas e listras enquanto invadiam o prédio do Capitólio”. 

Vários outros se adequam nessa lista, como o Rorschach do quadrinho/filme Watchmen. Que virou símbolo de justiça e até de cidadão ideal para alguns, mesmo sendo um vigilante mascarado bastante problemático. O que fomenta na cabeça das pessoas ideias violentas e um vigilantismo que o próprio criador do Rorschach, Alan Moore, aponta como errado e ideia de “Maluco“.

O incômodo ao qual tive em saber que Injustiça seria adaptado para animações foi pelo fato de que estamos num período de fácil proliferação de ideias erradas com os ânimos ainda na flor da pele por conta da pandemia. Não é errado queremos assistir obras de personagens mais maduros ou com contextos mais violentos e que satisfaçam nosso desejo de verossimilhança ao ver uma história com coisas tão absurdas. O que não podemos deixar é que no fundo de nossas mentes percamos o senso crítico equilibrado entre as histórias mais leves da era de prata e as histórias mais complexas vindas desde a era de bronze. Perdendo esse senso, poderíamos facilmente retornar a instintos bastantes primitivos. Algo ao qual tenho medo que já tenha começado a acontecer.

Por mais simples ou supostamente datados que sejam os ideais duma história simples de heróis ou cruzados encapuzados, não podemos nos esquecer do caminho percorrido e deixar de pensar que sem esse caminho estaríamos em eras mais sombrias onde fomentaríamos sentimentos destrutivos com os artifícios quadriculados que deveriam ser uma válvula de escape para uma realidade fantástica e esperançosa. Quadriculados surgidos de momentos em que autores pensaram consigo mesmos como seria trazer mitos como o do deus grego do sol Apolo direto para a modernidade, dando um novo ar de graça.

Esses mesmos quadriculados ainda vão ressurgir mais algumas vezes. Ressurgirão em momentos que teremos a inspiração para transportar versões antigas de ideias para contextos novos sem que percam sua essência. Essencialmente, contar e reinventar histórias é a metáfora perfeita para o funcionamento da nossa vida. Pois enquanto ainda houver quem conte uma história com uma moral, nós poderemos perceber que mesmo sem visão de calor, invulnerabilidade ou vôo ainda temos vida apesar de tudo e também uma responsabilidade com os outros e com nós mesmos. Vocês já sabem o que dizem sobre responsabilidade né?

Se desejar, confira antigas postagens dessa coluna e comente suas opiniões: Conjecturas Fantásticas

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