André Catarinacho, roteirista indicado ao Emmy Internacional Kids em 2021 e criador das séries de sucesso “Bugados” e “Diário de Luli”, estreia na literatura com “Super Marsh & Mallow” (Ed. Melhoramentos). No formato de livrogame, a obra une humor, aventuras dentro de um videogame e uma mensagem inspiradora sobre empatia e amizade, enquanto dois heróis improváveis — marshmallows molengas — enfrentam o bullying e se tornam protagonistas na Ilha dos Doces. O livro, que conta com ilustrações de Felipe Nunes e o aval de Pedro Bandeira no texto de orelha, promete conquistar crianças e adolescentes ao integrar o dinamismo dos games ao universo literário.
Com mais de 150 episódios escritos para a televisão, você agora estreia na literatura com Super Marsh & Mallow. Como foi a transição do universo das séries para o formato literário e o que te inspirou a criar essa história cheia de humor e empatia?
Um elemento muito pessoal me inspirou a criar Super Marsh & Mallow. Quando eu era criança, foram os videogames que me ajudaram a ter uma infância mais sociável, a me abrir para o mundo e fazer amizades que eu não faria sem os jogos. O videogame não me trouxe só a emoção dentro das telas, mas me ofereceu, principalmente, pertencimento fora delas. Eu sempre carreguei comigo o desejo de escrever uma história infantojuvenil que abordasse essa característica que é tão particular da minha infância, e ao mesmo tempo comum a tanta gente da minha geração.
Sobre a diferença entre o audiovisual e a literatura, penso que vir de uma experiência vasta no audiovisual, especialmente em Bugados, foi essencial para que Super Marsh & Mallow existisse da forma que existe. Em Bugados, como você disse, escrevemos mais de 150 episódios. Como cada um deles tinha três tramas, foram ao todo mais de 450 histórias contadas e filmadas ao longo de seis temporadas— isso sem falar no oceano de histórias que descartamos pelo caminho. Fizemos de tudo lá: criamos e testamos tramas, inovamos em formatos, aplicamos diversas teorias de roteiro na prática, brincamos com gêneros, temas, tons e estilos. Acertamos muito, erramos bastante também, aprendemos e evoluímos ao exercitar a criação de um número tão alto de histórias e, certamente, isso moldou a forma como eu escrevo. Hoje, para me sentir motivado a mergulhar numa história, ela precisa ter algo a mais. Precisa ser realmente original ou mexer comigo em algum sentimento muito particular. “Super Marsh e Mallow” me oferecia essas duas coisas.
Além disso, a liberdade é também um dos pontos de maior diferença prática entre roteiro e literatura. Por mais que as limitações criativas sejam sempre bem-vindas e funcionem como um motor para a imaginação brilhar, não dá para negar que, no audiovisual brasileiro, a criação nasce de mãos dadas com as limitações de orçamento. A literatura, ao contrário, é o quintal mais fértil que existe para a imaginação. Brincar ao máximo com essa liberdade foi o que tentei fazer com Super Marsh & Mallow.
A relação entre crianças, games e literatura é um tema central do seu livro. Como você enxerga o papel dos videogames na educação e no desenvolvimento das crianças e de que forma Super Marsh & Mallow dialoga com esse universo?
Acredito que ainda persista na mente de muita gente o conceito de que os videogames competem com a literatura. É aquele discurso clássico: “você podia estar lendo em vez de perder tempo nesse joguinho…” como se uma coisa fosse automaticamente excludente da outra. Não são. Videogame e literatura podem ser formas complementares de narrativa e aprendizado.
Como alguém que cresceu com um Mega Drive no quarto, discordo de qualquer um que coloque os videogames como o vilão da história. Videogames são uma forma de arte. Lembro da primeira vez que li “Meu Pé de Laranja Lima” e de como a obra me impactou. Lembro de como me senti ao terminar de ler “Matilda” na biblioteca da escola. Lembro de terminar de ler “O Mundo de Sofia” com 14 anos e de como a leitura despertou em mim uma vontade de conhecer todos os filósofos. Lembro de como fiquei arrebatado ao assistir pela primeira vez “A História Sem Fim”, “Pulp Fiction” e “Toy Story 3”. E, da mesma forma, lembro do impacto que senti ao zerar pela primeira vez “Pokemon Red”, “Mario 64” e “The Last Of Us”, lembro de como me envolvi com uma família de imigrantes morando no Canadá ao jogar “Venba”, lembro de como me senti leve ao terminar de escalar a montanha de “Celeste” e ajudar Madeline a enfrentar a depressão.
Quero dizer com isso que os videogames têm histórias poderosas a contar, tanto quanto os outros meios. Mas, claro, precisamos fazer um parênteses aqui. Nem todo jogo é arte. Talvez, sei lá, só 5% seja. Assim como existem livros que pouco acrescentam aos leitores e filmes que não passam de distrações vazias, há também jogos que só querem cliques, que são focados em prender a atenção do jogador e potencializar microtransações a todo custo.
Com Super Marsh & Mallow, meu objetivo foi criar uma ponte entre esses mundos — o universo lúdico e dinâmico dos jogos e o encanto das histórias literárias. Penso que educadores e pais precisam enxergar os videogames com menos negatividade, porque negar a relevância deles é lutar contra a realidade já imposta – por outro lado, entender os videogames é compreender uma nova linguagem da infância.
A história de Cecília aborda amizade e empatia de uma forma leve e tocante. Por que você escolheu explorar esses temas e como acredita que eles podem impactar os jovens leitores?
O mundo hoje anda com empatia de menos – e precisamos falar sobre isso, especialmente com as crianças. Uma das coisas que mais me orgulha em Super Marsh & Mallow é ter encontrado uma forma de abordar empatia de maneira leve e ao mesmo tempo profunda, sem cair em lição de moral. O livro conversa com as crianças de igual para igual, na horizontal, através da comédia e do entretenimento.
Diante desse cenário, acredito que os videogames podem ser grandes geradores de empatia, principalmente nos jogos que lidam com escolhas e consequências. Há vários jogos que nos colocam contra a parede e nos forçam a tomar decisões que trazem grandes consequências emocionais. Meu pensamento em “Super Marsh & Mallow” foi o de colocar uma lente de aumento nas escolhas de Cecília, sempre sob a ótica da empatia. Particularmente, um dos momentos mais tocantes da história acontece no terço final, quando Cecília se vê diante de Vladinídeo, o morcegaranha, e precisa decidir se Marsh e Mallow devem ou não dar o golpe de misericórdia que pode acabar com ele para sempre. É uma decisão cheia de nuances, que reflete sobre como enxergamos o outro, mesmo quando ele é considerado um vilão.
Nunca podemos prever ao certo o que cada leitor vai tirar de um livro, pois a experiência de leitura é particular. Tem os leitores que vão rolar de rir com as piadas do Mallow, outros que vão se inspirar com a determinação da Marsh, outros vão gostar da história da Doutora Pudim, alguns vão se identificar com as dores de Vladinídeo, tem quem vai achar tudo chato e deixar o livro de lado e quem vai reler várias vezes com atenção para capturar mais detalhes da história. Mas da mesma forma que Cecília saiu da experiência de jogar Super Marsh & Mallow mais sensível ao mundo ao seu redor, gosto de pensar que os leitores e leitoras vão fechar o livro um pouquinho mais empáticos com o mundo em volta delas. Posso estar errado, mas não acho que seja nenhuma utopia sonhar com um mundo mais doce.
A ideia de um “livrogame” é bastante inovadora e promete engajar os leitores. Qual foi o maior desafio de criar essa interação entre leitura e jogo e como você acredita que isso aproxima as novas gerações da literatura?
Super Marsh & Mallow é um livro sobre o poder da arte e como ela é capaz de transformar a nossa vida. Para explorar esse tema com profundidade e construir essa sensação da maneira exata que eu desejava, sempre tive muito claro que ele seria escrito em duas linhas narrativas: uma dentro e outra fora do jogo. O maior desafio foi justamente esse: estruturar essas linhas sem permitir que o fôlego ficcional do leitor se diluísse em nenhuma das partes.
Para isso, a primeira etapa foi criar o jogo. Eu queria algo nostálgico, da era 16-bits e, ao mesmo tempo, moderno. Também queria trazer todos momentos clássicos e reconhecíveis do videogame: escolher personagens, roupas, explorar cavernas, achar itens escondidos, pular espinhos, se envolver em lutas épicas, perder vidas, abrir baús misteriosos etc… Dentro do jogo, o texto precisava ser ágil, de ritmo acelerado, escrito no presente, sem acesso aos pensamentos das personagens e com muitas ilustrações. Com a entrada do Felipe Nunes no projeto, debatemos juntos cada uma das ilustrações e o talento dele fez o jogo ganhar vida de maneira ainda melhor do que eu tinha imaginado.
A segunda etapa foi criar o ‘fora do jogo’: a vida real de Cecília e tudo o que acontece atrás da tela. Como o livro se passa 80% dentro do jogo e 20% fora dele, eu decidi criar um cliffhanger forte – ou, no caso, uma tragédia – para que o leitor ficasse sempre em estado de curiosidade e se perguntando… o que será que aconteceu? Além disso, fora do jogo o estilo de texto é totalmente diferente: uma literatura mais lírica, com ritmo desacelerado, profundidade e com acesso aos pensamentos mais íntimos de Cecília.
Dessa mistura, nasceu um resultado com ritmo e dinâmica própria que se conecta com as crianças de maneira especial.
O escritor de hoje tem sempre que procurar novas formas de contar histórias. Vivemos em uma era em que o fôlego ficcional nunca esteve tão baixo: se não gostamos dos primeiros quinze minutos de um filme, desistimos de ver e passamos para outro; se os primeiros dez segundos de um vídeo não engajam… já estamos rolando a tela; livros e mais livros são abandonados na metade… Os estímulos mudaram. Nossa relação com o tempo mudou. Ou melhor: nossa relação com o perder tempo mudou. Como perdemos leitores a cada ano, temos que descobrir formas de manter os jovens engajados. Podemos cruzar os braços e reclamar, ou tentar coisas novas. Super Marsh e Mallow é a tentativa de criar uma coisa nova.
Com o texto de orelha assinado por Pedro Bandeira, Super Marsh & Mallow já nasceu com um grande peso. Como foi receber esse reconhecimento de um ícone da literatura infantil e infantojuvenil brasileira?
Foi surreal. Pedro Bandeira é um pilar da literatura infantil e infantojuvenil brasileira. Ele faz parte da memória afetiva de quem cresceu lendo no Brasil, e ter uma orelha escrita por ele, logo no meu primeiro livro, foi uma alegria que vou guardar para sempre no coração. Mas tenho para mim que isso não é só sobre reconhecimento, é também sobre responsabilidade. É um lembrete de que eu tenho que continuar criando histórias que respeitem a inteligência das crianças e a literatura como ele sempre fez.
Você mencionou que a obra ajuda a desmistificar a relação entre jovens e games para os pais. O que você diria a um pai ou mãe que ainda tem receio quanto ao impacto dos videogames na vida dos filhos?
Eu diria que é essencial ter cuidado com o que as crianças jogam no videogame e definir certos limites, da mesma forma que fazemos com o que elas assistem nos streamings e com os conteúdos que consomem na internet. Estabelecer limites é parte do papel de quem cuida, mas o que eu defendo é que não seja o videogame em si, de maneira macro, a ser punido. Para o adulto que ainda pensa que o videogame é um vilão, Super Marsh & Mallow é um convite para ressignificar esse olhar.
Em um mundo cada vez mais perigoso, os games podem ser um espaço seguro onde a criança encontra adrenalina, onde vive altas doses de emoção, onde sofre a dor de um fracasso, celebra a alegria de um acerto, onde aprende a ganhar e perder e onde emoções básicas são sentidas em alta voltagem. Se a criança gosta de um jogo, sente com ela e entenda: por que aquele jogo importa? Que outros jogos você pode apresentar a ela? Como inserir aos poucos jogos mais relevantes? Como os aprendizados do videogame podem contribuir com a vida real? O videogame não necessariamente precisa ser um abismo para o mundo dos filhos. O importante é que esse universo seja explorado com curiosidade e diálogo.
Seus trabalhos anteriores, como Bugados e Diário de Luli, são marcados pela imaginação vibrante e temas profundos. Como essas experiências influenciaram o desenvolvimento de Super Marsh & Mallow e o que os leitores podem esperar de você no futuro?
Acredito que meus projetos anteriores me trouxeram mais experiência, maturidade narrativa e uma certeza ainda maior no meu desejo de seguir pela vida criando e contando histórias.
Quanto ao futuro, os próximos anos prometem boas novidades: em 2025, faço minha estreia no teatro com “Tv Colosso – O Musical” e lanço dois novos livros. Já em 2026, se tudo der certo, estrearemos pela Scriptonita Films e pela Conspiração o primeiro filme dos Karas: “A Droga da Obediência”, baseado no bestseller do Pedro Bandeira — além de outros projetos ainda em desenvolvimento que mal posso esperar para compartilhar. Difícil vai ser controlar a ansiedade. Tem muita coisa boa vindo aí.
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