Violência contra mães e pessoas com deficiência: quando a sociedade escolhe não ver

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Por Valmir de Souza (*)

A violência contra mulheres no Brasil é uma chaga antiga e persistente, mas quando falamos daquelas que são mães de pessoas com deficiência ou que têm deficiência, a ferida se aprofunda. Não se trata apenas de agressões físicas ou psicológicas. Trata-se de um apagamento diário, de uma negligência estrutural que insiste em reduzir essas mulheres e seus filhos a uma condição invisível na sociedade.

Os números, por si só, já são alarmantes. Segundo o Atlas da Violência 2025, foram registrados cerca de 14 mil casos de agressão contra mulheres com deficiência, mais que o dobro em comparação aos homens na mesma condição (6 mil casos). Entre as mulheres com transtorno mental, a situação é ainda mais dramática: foram 7.429 casos registrados, mais da metade do total. Mas por trás desses dados frios existem histórias reais de dor, medo e abandono. Histórias que raramente chegam às manchetes, mas que deveriam estar no centro do debate público.

A dependência de terceiros para atividades cotidianas, isolamento social e estigma contribuem para que essas pessoas se tornem mais suscetíveis à pobreza e ampliem os riscos. A violência pode se manifestar de diferentes formas, incluindo agressão física, abuso sexual, violência emocional, negligência, exploração financeira, manipulação de medicação e até a destruição de equipamentos essenciais para a autonomia da pessoa. No próprio sistema de saúde, vemos casos de esterilizações forçadas, ausência de acessibilidade mínima, falta de intérpretes de Libras no parto de mulheres surdas, macas inacessíveis para cadeirantes e por aí vai.

Um dos maiores problemas é que os agressores costumam ser pessoas do convívio próximo, como familiares, parceiros ou amigos, o que torna a identificação e a denúncia dos casos ainda mais difíceis. O lar, que deveria ser um espaço de proteção, muitas vezes se transforma no ambiente mais perigoso: 59,73% das notificações de violência contra mulheres com deficiência acontecem em casa. É como se a sociedade tivesse naturalizado o esquecimento dessas pessoas.

A dependência econômica é um dos principais fatores que mantém muitas mulheres presas a relacionamentos abusivos. Sem renda própria ou acesso a recursos financeiros, elas acabam vulneráveis ao controle do agressor, que usa o dinheiro como instrumento de poder e submissão.
Esse cenário cria um ciclo vicioso: o medo da instabilidade financeira, aliado à falta de rede de apoio, dificulta a ruptura com o opressor e prolonga a exposição à violência. Em muitos casos, essa dinâmica de aprisionamento econômico não só perpetua o sofrimento, como também aumenta o risco de que a escalada de agressões resulte em feminicídio.

A sobrecarga emocional também é enorme para as mães de crianças e adultos com deficiência e não é incomum que elas cheguem ao limite. Há casos de suicídio e até de tentativas de tirar a vida de seus próprios filhos, não por falta de amor, mas pelo esgotamento absoluto diante de uma realidade hostil. Essas tragédias escancaram o abandono social: mães que faleceram e demoraram dias para serem notadas, vizinhos que só percebem sua ausência quando o silêncio pesa demais. É a solidão transformada em sentença.

O que está por trás disso é um emaranhado de fatores: o estresse crônico de quem precisa lidar sozinha com cuidados complexos, a ausência de serviços de apoio psicológico e social, o peso financeiro de terapias, tratamentos e adaptações, o estigma que insiste em culpabilizar mães por uma condição que não escolheram. O resultado é uma vida vivida à margem, em que o direito de existir com dignidade parece ser privilégio dos outros.

Precisamos falar disso sem meias palavras: o Brasil falha com essas mulheres e com essas famílias. Falha quando não oferece políticas públicas eficazes, quando não forma profissionais de saúde preparados, quando empurra crianças com deficiência para escolas despreparadas, quando insiste em enxergar essas pessoas como “fardo” em vez de cidadãos com direitos plenos.

Mas também é responsabilidade nossa, como sociedade. Não basta esperar ações do Estado se, no dia a dia, continuamos ignorando essas mães, suas dores e suas necessidades. A empatia precisa ser prática, não discurso. Precisamos construir redes de apoio, dar visibilidade a essas histórias, cobrar políticas que garantam suporte financeiro, emocional e estrutural. Essas mulheres não precisam de pena, precisam de respeito, de dignidade e de condições reais para viver com seus filhos sem que a vida se resuma a sofrimento e invisibilidade.

A mudança exige coragem: coragem de olhar para o que sempre se quis esconder, de dar voz a quem historicamente foi silenciado, de transformar indignação em ação. É só com suporte adequado, políticas públicas eficazes e uma cultura de solidariedade que poderemos evitar que novas tragédias aconteçam.

Essas mães não são heroínas por obrigação. São mulheres comuns, com sonhos, dores e desejos, que carregam uma responsabilidade gigantesca em um país que insiste em deixá-las sozinhas. E se a sociedade seguir de olhos fechados, continuará cúmplice dessa violência invisível.

(*) Valmir de Souza é COO da Biomob, startup especializada em consultoria para acessibilidade arquitetônica, digital e atitudinal; criação e adaptação de sites e aplicativos às normas de acessibilidade; além de atuar na capacitação de pessoas com deficiência para o mercado de trabalho

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