Rita Cota transforma sentimento de luto em narrativa literária através de “Seu Vício, Nosso Segredo”

Luca Moreira
13 Min Read
Rita Cota (Foto: Divulgação)

O sofrimento causado pelo luto gestacional dificilmente pode ser traduzido em palavras. No caso da escritora Rita Cota, esta experiência, vivida em 2015, foi ainda mais traumática. Uma gravidez ectópica, quando o embrião se desenvolve fora da cavidade uterina, foi descoberta pouco antes do óbito do bebê e ocorreu devido a uma falha do dispositivo intrauterino (DIU), mesmo este sendo considerado um método contraceptivo de alta eficácia.

O curto período entre o momento da notícia da gestação e a perda do filho, colocaram Rita em uma espiral de dor e angústia. Decidida a não se lamentar, ela se agarrou na leitura, e aos poucos, encontrou na escrita o canal para transformar a própria tristeza em um meio de empoderar outras mulheres.

Criada em uma família com valores religiosos rígidos, Rita se viu impelida a refletir sobre as vivências femininas, especialmente as limitações socialmente impostas no que diz respeito à sexualidade. Do desejo de contribuir com essa abordagem, nasceu Seu Vício, Nosso Segredo, obra de ficção que discute temas de relevância atual como: críticas sociais, ética profissional, valorização da mulher, desigualdade econômica, vida familiar baseada em aparências e tabus sexuais.

Na história, a chegada de um empresário bem-sucedido na emergência de um hospital desestabiliza a rotina de Francesca, a médica de plantão. Ele exige atendimento diferenciado devido à sua condição social privilegiada, mas a profissional se recusa a aceitar tais imposições. Francesca se torna um alvo a ser conquistado pelo paciente enigmático e acaba envolvida em uma trama que a faz questionar os próprios valores e as amarras impostas socialmente pelo fato de ser mulher. Confira a entrevista!

Após perder o seu bebê, você escreveu ‘Seu vício, nosso segredo’, a obra retrata a dor e superação? Mães que passaram por essa dor se sentirão acolhidas?

Na época, seria incapaz de retratar a minha experiência gestacional. Sentia-me fragilizada devido a perda do bebê. Esse sofrimento veio a público agora, com o lançamento do meu livro. A minha experiência de superar o luto e transformá-lo em vida através do livro pode inspirar outras mulheres. “Seu Vício, Nosso Segredo” narra o amadurecimento sexual feminino, deixando que a voz adormecida de Francesca, abafada pela imposição dos valores familiares repressores refletidos pela sociedade, liberte-se. Em todo caso, as mamães se sentirão acolhidas com o depoimento da protagonista em relação à dificuldade que a sua progenitora teve para conseguir engravidar. Além disso, o papel da mãe de Francesca é oferece apoio a sua filha, ainda que discorde em alguns momentos. Dionísio também relata sua experiência traumática com a falta de atenção dos pais. Os leitores se identificaram com essa narrativa não só pelo tema central, mas também pelos temas sensíveis abordados no livro.

Como a literatura te ajudou a passar por um momento tão traumático como a perda de um bebê e a se empoderar como mulher?

A literatura e a arte tiveram um papel fundamental na minha superação. Precisava me distrair para que a minha dor não afetasse a rotina da minha filha de 5 anos. Durante esse processo, identifiquei-me com a forma como a pintora Frida Kahlo retratava o seu sofrimento por não ser mãe. Aqueles quadros dialogavam comigo. A arte tem essa potência. A partir do luto, passei a enxergar as questões femininas com mais atenção, e essa percepção foi fundamental para me empoderar e, consequentemente, empoderar a minha escrita para que outras mulheres refletissem sobre suas vidas igualmente.

Como ser criada em uma família com conceitos religiosos rígidos impactou na sua vida como mulher, principalmente no que diz respeito a sexualidade?

A religião foi importante para a construção dos meus valores e isso é inegável. Ter fé me ensinou a ser forte para enfrentar as dificuldades na vida. Acredito que esses conceitos religiosos prejudicaram a minha sexualidade no sentido de marginalizar o sexo, isto é, de impedir que conhecesse o prazer sem rótulos, de entender quais eram as minhas necessidades. O protagonismo sexual é importante para a mulher. Ela precisa saber quais são os seus limites, o que a agrada e o que a desagrada. A felicidade autêntica floresce quando a mulher entende qual é o seu papel na sociedade e como o seu protagonismo sexual pode libertá-la de relacionamentos abusivos e falsos julgamentos.

Em suas pesquisas para escrever o livro você entendeu ainda mais como a sociedade enxerga a mulher que quer ser dona da sua própria vida. Com isso você acaba criando personagens que desempenham esse papel na vida da protagonista do seu livro. Que paralelo você faz com esses personagens na sua vida? Alguém já exerceu esse papel de julgador para você?

Identifico-me com a superação da Francesca ao longo do livro. A mulher precisa assumir as rédeas de sua vida e isso inclui fundamentalmente a sexualidade. Cada personagem desempenha um papel importante na vida da protagonista, assim como as circunstâncias difíceis desempenham um papel desafiador na minha vida. Enfrento julgamentos o tempo inteiro quanto à criação das minhas filhas, quanto à minha profissão, quanto ao meu posicionamento. Acredito que todas as mulheres encaram esse viés do mesmo modo. Essa luta é de todas nós, e é diária. A cobrança pelo ideal de mulher, que carrega o mundo nas costas, sobrecarrega mais do que as próprias atividades que exercemos no dia a dia. É preciso entender nosso papel diante da sociedade e lutar para que a nossa voz seja respeitada.

Rita Cota (Foto: Divulgação)

Sendo mãe de 2 meninas, como você acha que futuramente o seu livro, que trata assuntos como descobertas femininas e autoaceitação, irá impactar a vida de suas filhas?

Autoaceitação e sexualidade são temas abordados na minha casa, isto é, conversamos o que é possível explicar para uma adolescente de 12 anos e uma criança de 4 anos. Tenho certeza de que esse livro é um legado para as minhas filhas. Quando puderem ler, entenderão sobre os ensinamentos ministrados por mim a elas ao longo de suas vidas. Os temas que envolvem a narrativa já serão conhecidos, e assim elas poderão experimentá-los dentro de um contexto literário. É importante as mulheres conhecerem suas inspirações na arte, na música, na dança, na literatura, na medicina e na filosofia. Saber que outras mulheres enfrentaram problemas parecidos, ajudam na superação e na busca por um espaço que já é nosso, mas que precisamos reforçar essa posse através das nossas atitudes e posicionamento diante da vida. Inclusive, durante muito tempo, acreditei que, para protegê-las, deveria lançar o livro com pseudônimo. Depois entendi que seria importante registrar minha obra com o meu nome, assim inspiraria as minhas filhas e outras mulheres também.

Nós ainda vivemos em uma sociedade bastante machista onde a mulher é constantemente julgada por suas atitudes, o que de certa forma acontece com a protagonista do seu livro, a Francesca. Como você acha que o modo como ela lida com as situações que lhe foram impostas podem ajudar outras mulheres a reagirem as tantas críticas que ainda sofremos?

Existem momentos desafiadores para Francesca no desenrolar dos capítulos. O fato de ser médica a colocou em um conflito interessante. Até onde posso deixar a minha emoção falar e quando preciso deixar que a ética domine a minha razão? Francesca indaga a sociedade, faz críticas sociais e se posiciona como uma mulher forte, evitando que o seu protagonismo seja subjugado pelos outros personagens. Em diversas situações, ela reflete sobre os seus conflitos, buscando formas de lidar com as críticas do mesmo modo que pondera os conselhos alheios para evitar sua ruína emocional. O dever dessa mulher não é levantar uma bandeira feminista, é fazer com que a sua voz não se cale diante dos imprevistos que surgem em sua vida. Sua intransigência, conforme a consideração de Dionísio, é um posicionamento. Caso um homem reagisse como Francesca, seria considerado como bem-sucedido? Então, por que ela não é vista dessa forma por seu parceiro?

No caso da literatura, uma de suas principais características é justamente conseguir nos levar para o universo submerso do próprio autor. Como foi o processo de conseguir passar para a escrita todos esses sentimentos que tinha naquele momento e o que essa obra   significa pra sua vida hoje, depois de vê-la pronta?

Falar sobre o meu livro é muito importante. Antes de ele nascer, eu era a esposa do Rogerio e a mamãe da Desireé e da Chloe. Cursei diversas faculdades, mas nunca havia me identificado com nenhuma profissão. Acreditava que o meu modelo ideal era dentro de uma empresa, atrás de um computador. Relutei contra essa imposição durante anos. Por isso, superar o luto e descobrir a minha voz após essa experiência dolorosa, foi fundamental para exercer o meu papel na sociedade com prazer e responsabilidade. Ter uma profissão não nos torna potentes. O que nos torna protagonistas das nossas vidas, é fazer aquilo que nos abastece para inspirarmos outras pessoas. Cada palavra, cada poesia, cada obra de arte, cada música ou cada trecho de outros autores, descrito no livro, foi pensado com cuidado, para exaltar a feminilidade e as fortalezas da Francesca. Nenhum detalhe pode ser desprezado, pois criei enigmas que serão revelados em um segundo livro que já está em produção.

Pra qual público ou tipo de leitor você recomendaria o seu livro? Homens também podem aprender com mulheres e vice-versa?

A narrativa envolve cenas de sexo que não são aconselhadas a menores de 18 anos, então recomendaria para o público adulto. Homens e mulheres se identificarão com os personagens e poderão aprender algo com eles. A literatura tem o poder de tocar as pessoas, independentemente do gênero. Nenhum artista cria sua obra para agradar um nicho apenas. Claro que, em geral, algumas pessoas gostam mais de um estilo literário do que outras, mas isso não significa que o trabalho não possa ser apreciado pela diligência que foi desenvolvido. Alexandre, O Grande, foi uma inspiração para desenvolver o meu livro. Ele era um homem sensível que gostava da literatura e da arte, mas foi transformado em um estrategista para dominar territórios. Quem poderia imaginar que um homem que era um ativista bélico se inspirava em Homero?

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*Com Letícia Cleto

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