Novo livro de Carlos Augusto Ferreira Galvão expõe cicatrizes da ditadura militar no sul do Pará

Luca Moreira
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Carlos Augusto Ferreira Galvão
Carlos Augusto Ferreira Galvão

Ambientado no turbulento cenário da guerrilha do Araguaia, Quando Caem as Cinzas — Desventuras amazônicas na noite brasileira, de Carlos Augusto Ferreira Galvão, transforma a trajetória de um jovem médico em Marabá em um retrato pungente das violências e silêncios impostos pela ditadura militar. Mesclando ficção e fatos históricos, o romance revela o peso da repressão armada no sul do Pará e resgata memórias de resistência, coragem e sofrimento que ainda ecoam no Brasil contemporâneo.

“Quando Caem as Cinzas” nos leva a uma Amazônia em chamas — literal e simbolicamente. Como foi o processo de mergulhar nesse passado tão denso e doloroso para escrever uma narrativa que mistura ficção e fatos históricos?

Em Belém, eu mais me preocupava em estudar e, por isso, era meio desligado da politica. Formei-me e fui, como o Benedito, trabalhar em Marabá. Lá enfrentei a realidade da ditadura. Muito eu vi, muito ouvi e muito me revoltei sem nada poder fazer. Aquele ano ficou por décadas armazenado em meu cérebro, até um dia há 30 anos quando sentei e resolvi escrever um romance com toda esta vivência.

O protagonista Benedito é um médico idealista que acaba confrontando o horror da ditadura. Sendo o senhor também médico, em algum momento sua própria vivência influenciou a construção desse personagem?

Emprestei muito de minha vida ao personagem, mas não tive muito controle sobre a construção dele, apesar de que sei que saiu de minha cabeça. Aliás, perder esse controle me fez me surpreender com os personagens. Experimente isso inclusive em meu segundo romance. Benedito foi se construindo na medida em que o texto avançava.

O livro fala de memória, coragem e repressão. Como o senhor enxerga o papel da literatura na preservação da história, especialmente em tempos em que há tentativas de revisionismo ou apagamento?

Não é a toa que os regimes autoritários odeiam as artes, em especial a literatura, porque ela descreve tempos e coisas que os poderosos preferem que continuem enterradas. Da ditadura Vargas, minha geração não se surpreenderia se dissessem que tinha se passado em Marte. Neste tempo de revisionismo, faço minha parte, e são tempos que me motivaram contar coisas que vi e vivi na vida.

A guerrilha do Araguaia ainda é um episódio pouco abordado na ficção nacional. O que o motivou a escolher justamente essa região e esse contexto para ambientar seu romance?

A história do estado em que nasci é totalmente esquecida e muito manipulada. Um exemplo é sobre o Almirante Francisco D’Andrea, que em 1835 assassinou dois terços da população do Pará e hoje é considerado herói da pacificação nacional da Marinha Brasileira.

Apesar do enredo estar situado no passado, há ecos muito claros com o presente. Que reflexões o senhor espera provocar nos leitores mais jovens, que não viveram a ditadura?

Quero conscientizar os mais jovens sobre o que foi a ditadura, que muitos hoje até a enaltecem. Desejo que quem leia meu romance, seja jovem seja velho, fique com raiva da ditadura e sinta vontade de nunca vivenciar outra no Brasil.

A escrita alterna o poético e o trágico. Essa dualidade foi pensada desde o início ou surgiu naturalmente, conforme o senhor se debruçava sobre as dores e belezas da história contada?

Meu “mestre” , o romancista Finlandês Mika Waltari, tem este estilo que (quanta pretensão, meu Deus) procuro imitar. Mas a poesia sempre é um instrumento para  “prender” o leitor. Quanto ao trágico, ele se mostrou por si naquela cidade.

Como psiquiatra, o senhor certamente conhece de perto as feridas invisíveis deixadas por traumas. De que forma essa sensibilidade clínica contribuiu para retratar os danos psicológicos causados pela repressão?

Elas apareceram em meu consultório. Consultei jovens que me relataram que, quando eram recrutas, foram barbaramente torturados pelas forças militares. Ao ver recentemente o documentário de nome “Soldados do Araguaia”, cheguei a ter remorsos, porque não acreditei naqueles meninos. Isso porque a violência sexual contra a mulher é descrita pela literatura, ao contrário dos traumas da violência sexual enfrentada por homens. Nisso sim, usei a experiência que tenho na psiquiatria.

O título Quando Caem as Cinzas evoca o que resta após o fogo. O que o senhor acredita que ainda pode florescer dessas cinzas históricas, especialmente se elas forem lembradas com responsabilidade?

Somos uma nação que aprecia profundamente os valores democráticos. Faço um esforço em minhas “mal traçadas” de expandir estes valores para que nunca mais os percamos.

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