Novo livro de Antonia Maria propõe olhar sistêmico para adicção e destaca papel das famílias no processo de recuperação

Luca Moreira
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Antonia Maria
Antonia Maria

Com décadas de experiência como assistente social e terapeuta familiar, Antonia Maria lança Famílias Adictas, obra que propõe uma abordagem sistêmica para compreender e tratar a adicção. Por meio de estudos de caso, embasamento teórico e pesquisa de campo no Brasil e no Canadá, o livro convida a deslocar o foco do indivíduo para refletir sobre o papel da família e do contexto social no enfrentamento das dependências químicas.

Você atuou por muitos anos como assistente social e terapeuta familiar, em contato direto com pessoas em situação de vulnerabilidade. Como essa vivência concreta influenciou a forma como você decidiu estruturar o livro “Famílias Adictas”?

Essa pergunta é bastante complexa, pois se trata de duas perspectivas diferentes, porém complementares. Uma na visão de assistente social e outra na visão de terapeuta de família.

Conforme falo na nota do autor, eu entrelaço o passado com o presente vislumbrando o futuro quando me refiro à roda da vida que está sempre em movimento. Ou seja, mesmo sendo a família um dos principais objetos de intervenção do assistente social, nos meus primeiros passos trabalhando com pessoas adictas eu ainda estava presa ao modelo convencional de que o adicto era o único responsável por sua doença e a família que era a vítima.  Só que, ao longo do tempo, fui percebendo que essa conta não fechava. Foi aí que surgiu o desejo de aprofundar meus conhecimentos e fiz o curso de especialização em terapia de família, quando passei a desenvolver uma nova visão de mundo, a circular. Nela, não é somente o adicto de substâncias psicoativas que é considerado doente e responsável pela própria doença, e sim o sistema familiar como um todo. Partindo desse princípio, nasceu o desejo de compartilhar com o público essas minhas inquietações.

A proposta do livro é deslocar o olhar do indivíduo para o sistema familiar e social em que ele está inserido. O que você acredita que muda na recuperação de uma pessoa adicta quando a família também passa a ser tratada como parte do processo?

Ao longo da vida fomos condicionados a enxergar o mundo de maneira linear, sempre responsabilizando o outro por nossas dores e sofrimentos, sem nos implicar nesses problemas. A visão sistêmica vem para desconstruir esse padrão de pensamento, mostrando um caminho circular e convocando o indivíduo a se implicar em tudo o que acontece em sua vida. Seja nos momentos bons (agradáveis) ou nos momentos ruins (desagradáveis). Nas relações familiares não é diferente, pois, quando uma adicção surge no sistema familiar, seus integrantes costumam se organizar de tal forma que coloca o adicto como sendo o único responsável pelo sofrimento de toda a família. É aí onde entra o papel do terapeuta sistêmico de família, para desmistificar esse pensamento, auxiliando a família a compreender que a adicção por alguma substância é uma doença, e assim como qualquer outra doença, o adicto precisa ser acolhido e cuidado por sua família. Da mesma forma, essa família também precisa ser cuidada, para que possa encontrar medidas mais assertivas de como lidar com essa doença que inicialmente parecia ser somente do adicto, mas que depois passou a ser a doença de todo um sistema familiar. Com esse pensamento, o adicto poderá ressignificar sua relação com a substância e consequentemente resgatar seu papel dentro desse sistema de maneira mais saudável. E, quem sabe, substituir a substância psicoativa por outras fontes mais saudáveis para ocupar seus vazios existenciais.

Você mergulha em teorias sistêmicas, mas também compartilha casos clínicos reais no livro. Como foi o processo de escolher e recontar essas histórias de maneira ética, sem perder a potência transformadora que elas carregam?

Talvez essa tenha sido a parte mais difícil, pois são histórias de pessoas que confiaram a mim suas particularidades, portanto, era meu dever ético preservar o anonimato delas, bem como os nomes de instituições e locais. Por outro lado, eu também tinha que encontrar alternativas que pudessem contextualizar o leitor sem perder a linha cronológica dos fatos e ao mesmo tempo sem expor os protagonistas dessas histórias. Por isso, optei por adotar nomes fictícios para os pacientes e seus familiares. No caso das instituições, preferi apenas colocar a categoria das quais elas fazem parte.

Na terceira parte do livro, você observa as dinâmicas da adicção em pessoas em situação de rua e faz um comparativo entre Brasil e Canadá. O que mais te surpreendeu nessa comparação e o que você acha que o Brasil poderia aprender com a política de Vancouver?

O que mais me surpreendeu foi descobrir que, mesmo em países desenvolvidos, existiam desigualdades sociais tão extremas. Além de um contingente elevadíssimo de pessoas em situação de rua que se mesclava entre usuários de substâncias psicoativas e pessoas com transtornos mentais certamente decorrente ao uso abusivo dessas substâncias. Seguindo o exemplo do Canadá, o Brasil poderia oferecer um suporte psicossocial mais especializado às famílias de adictos, favorecendo com que aprendam a lidar melhor com a situação e adotem medidas mais assertivas no cuidado com o seu integrante. Dessa forma, passariam a acolher o adicto, mesmo que ele não consiga interromper o uso de Substâncias Psicoativas, pois existe uma maior tolerância quando esse uso contínuo vem acompanhado de suportes, tais como: terapia de família, grupos de apoio e estratégias de redução de danos.

O tema da adicção muitas vezes é cercado de tabus, preconceitos e julgamentos morais. Como você lida com esses estigmas no seu trabalho e de que forma o livro busca quebrar essas barreiras?

Uma das medidas que tomei logo de imediato foi a substituição de termos pejorativos (alcoólatra, cachaceiro, bêbado, drogado, etc, comumente utilizados tanto pela família quanto pela sociedade) por termos que suavizam o peso e culpa que o adicto carrega, redirecionando-o para um lugar de quem precisa de ajuda. Quando trocamos as palavras, inevitavelmente mudamos a forma de enxergar os adictos e consequentemente a forma de lidar com eles. Assim, incentivamos a família e a sociedade a reverem suas condutas e mudarem padrões de comportamento segregadores e  excludentes.

Famílias que convivem com a adicção costumam oscilar entre o amor e o esgotamento. Que tipo de suporte você acredita que essas famílias mais precisam — e muitas vezes não recebem?

O primeiro passo seria a escuta sem julgamento da queixa da família, que na maioria das vezes vem com uma dose de sofrimento muito elevada. Ainda que exista amor, é muito comum que tragam relatos de comportamentos e atitudes inadequadas para lidar com tal problemática. Para tanto, é importante a criação de políticas públicas de acolhimento a essas famílias, dando um direcionamento mais assertivo e específico de como lidar com esses adictos dentro de casa. Essa conduta pode evitar que o adicto termine agravando o quadro, tornando o convívio familiar insustentável, ao ponto de resultar na sua saída do sistema familiar, seja por conta própria, seja por exclusão. Em alguns casos, essa saída pode levá-lo a viver em situação de rua.

Você traz uma abordagem que une práticas integrativas, escuta ativa e ciência. Como foi construir uma narrativa que acolhe a espiritualidade e o cuidado emocional, mas sem deixar de lado o rigor técnico?

Esse é um terreno minado, pois somos um país com muitas diversidades nessa área da espiritualidade, o que impõe ao terapeuta um certo manejo para não ultrapassar as fronteiras entre o saber técnico e as crenças individuais. Por conta disso, optei por não trazer essa abordagem no livro em si, porém, quando o assunto é trazido pela própria família durante o processo terapêutico, utilizamos isso como aliado para o desenvolvimento desse processo.

Por fim, seu livro propõe navegar pelas “águas turbulentas da adicção” em direção à calma. Que mensagem você gostaria que cada leitor levasse consigo ao fechar a última página dessa obra?

Para responder essa última pergunta, irei citar um dos trechos da orelha do meu livro: “A boa notícia é que nem tudo está perdido. A terapia sistêmica pode funcionar como uma bússola, orientando embarcações à deriva, para que encontrem, com segurança e serenidade, o caminho de volta à terra firme familiar”.

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