O trecho que você compartilhou descreve o enredo do livro “Entre Muitas Vozes” de Marco Antonio Martire. A obra parece abordar temas como aspirações artísticas, conflitos familiares, alcoolismo, solidão e as complexidades da sociedade brasileira. Martire utiliza a interação entre os dois personagens, Domênica e Vianna, para explorar esses temas e destacar as contradições e hipocrisias nas relações pessoais e na sociedade em geral. A ambientação em uma choperia no Rio de Janeiro contribui para mostrar as diferentes realidades que se entrelaçam no cotidiano.
A narrativa equilibrada entre diálogos e pensamentos internos dos protagonistas permite que os leitores conheçam as perspectivas desses personagens, suas lutas internas e como suas vidas se entrelaçam.
No contexto mais amplo, o livro parece abordar questões sociais e políticas, como o crescimento do fascismo na política brasileira, o que adiciona uma camada adicional de complexidade à narrativa.
No geral, “Entre Muitas Vozes” parece ser uma obra que oferece uma reflexão profunda sobre a vida, as aspirações individuais e as tensões sociais no Brasil contemporâneo. Pode ser uma leitura interessante para quem deseja explorar esses temas.
“Entre Muitas Vozes” parece explorar o encontro de duas realidades distintas no ambiente de um bar. Pode nos contar mais sobre o cenário e como ele influencia a narrativa do livro?
Parte da narrativa se passa dentro de um bar. É onde os personagens se encontram, tendo Domênica e Vianna como protagonistas. Toda a narrativa transcorre a partir da personalidade destes dois personagens e do que eles estão fazendo lá. Vianna bebe, fuma, brada contra os outros frequentadores sem que ninguém lhe escute. Já a presença de Domênica é mistério, o que ela está fazendo ali, o que espera de um relacionamento com uma figura tão hostil? Creio que essa pergunta segue até o fim do livro. Tenho dúvidas se ela é respondida de verdade.
Os personagens principais, Domênica e Vianna, têm características bastante diferentes. Como você desenvolveu essas personalidades e o que desejava transmitir através delas?
Vianna foi mais fácil. Já que estava criando um bar, precisava pôr nele um bêbado, uma figura odiosa, que desprezasse os outros frequentadores. Todo o seu preconceito nasceu daí. Domênica foi mais difícil, precisava criar uma motivação para que ela aceitasse o diálogo com uma figura tão preconceituosa. Ainda hoje tenho dúvidas se fiz bem em expor uma menina tão admirável a uma fonte de preconceitos tão determinante. Mas acho que a briga com a família entra aí, é a força motriz que faz Domênica aceitar esse diálogo.
A narrativa do livro inclui elementos como o crescimento do fascismo no contexto brasileiro. Como você abordou essas questões políticas e sociais na história?
A questão política está toda no discurso de Vianna, um jornalista rico, até certo ponto respeitado, mas alcoólatra, e que gradualmente perde sua voz. Entre os anos 10 e 15, quando foi escrita a primeira versão deste livro, questões como o fascismo no contexto político e social brasileiro pareciam enterradas. Daí porque felizmente a voz de Vianna progressivamente some. Mas o cenário deu uma guinada no final da década, e o fascismo aflorou. Percebi então que tinha feito um retrato desse renascimento.
O livro equilibra diálogos e pensamentos internos dos personagens. Pode compartilhar mais sobre sua escolha de estilo narrativo e como isso contribui para a história?
Não foi uma escolha, o livro simplesmente se escreveu assim. Tenho consciência que no cenário da literatura brasileira contemporânea se está escrevendo de forma bem diferente. Estamos valorizando múltiplos discursos narrativos, o que é excelente. Acho que hoje tenho vontade de escrever algo mais nessa linha.
Marco, você é autor de outros livros, incluindo “Capoeira Angola mandou chamar”. Como seu estilo de escrita evoluiu de uma obra para a outra?
Meu livro sobre capoeira foi escrito quando eu tinha 20 e poucos anos. Considero um excelente livro, parte do que de melhor produzi nos últimos anos. Ele tem uma linguagem toda trabalhada para refletir o universo da capoeira angola, o que foi uma bela proeza da minha parte. Se por um lado, algumas ideias estão datadas, por outro, o exercício de linguagem permaneceu, entregando ao leitor ainda hoje uma bela obra.

O título “Entre Muitas Vozes” sugere a ideia de vozes que tentam se sobressair em meio a um universo de vozes. Como esse conceito se relaciona com a trama do livro?
O conceito do livro foi pensado para uma trama que valorizasse o burburinho presente em um salão de bar. As inúmeras vozes, as conversas que se cruzam e misturam enquanto os garçons vêm e vão trazendo os pedidos. Os próprios pedidos sendo feitos nas mesas para os apressados garçons. O movimento no balcão, o vai-e-vem da cozinha. Tudo isso colaborando para criar uma espécie de trilha sonora, que nos atinge e ampara.
A obra parece explorar a hipocrisia nas relações interpessoais. Pode nos falar mais sobre essa temática e como ela se desenrola na história?
A hipocrisia está presente na família da Domênica, que vive a ilusão de uma relação perfeita. Então eles têm um casamento perfeito e a filha perfeita, que não dá problemas, obedece às ordens da mãe manda-chuva, que se mete inclusive na escolha de sua carreira. Na verdade, a mãe tem problemas de autoestima relacionados ao trabalho e sofrerá um grande revés nas suas expectativas quanto ao próprio casamento.
Vianna é um personagem com problemas de alcoolismo e perda parcial da voz. Como essas características afetam a maneira como ele se relaciona com Domênica e com o mundo ao seu redor?
Aí é que está. Não parecem afetar. Vianna está completamente rendido na mesa de bar e tudo o que consegue fazer é destilar seu preconceito, que nasce da ideia absurda segundo a qual ele que tem dinheiro, então pode falar e fazer tudo. Não se sabe quanto de sua voz os outros frequentadores ouvem, mas a verdade é que a única interessada parece ser mesmo Domênica. O porquê eu não sei. Apostaria que por compaixão. Ela é uma boa menina, mas não sabe com quem está se metendo, não se sabe o quanto ela está absorvendo de tanto preconceito que ouve o bêbado destilar.
Qual é a principal mensagem ou lição que você espera que os leitores retirem de “Entre Muitas Vozes”?
Corram atrás dos seus sonhos, mas atenção com quem se envolvem, simplesmente às vezes pode não valer a pena. A vida trata de mostrar outros caminhos.
Além deste livro, você também tem textos em coletâneas e antologias. O que o inspira a escrever e quais são seus projetos literários futuros?
Passei por uma crise pessoal em que estou revendo todo o meu projeto literário. Sinto vontade de fazer oficinas, de ler, de encontrar meu próprio tempo dentro do meu dia para a literatura. Para não dizer que não estou fazendo nada, estou escrevendo um novo romance. Pretendo trabalhar com ele em oficinas e inscrevê-lo em concursos literários.
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