Marcelo Barbosa promove reflexão e críticas à estrutura social brasileira, além de impactos psicológicos da violência em novo livro

Luca Moreira
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Marcelo Barbosa
Marcelo Barbosa

“A vida de cão do Requis” espelha a realidade de muitos brasileiros, mergulhados em um ciclo de semiabandono e desafios diários em meio à negligência de suas comunidades. O protagonista, Requis, vive um cotidiano marcado pelo medo constante – seja da carrocinha, de balas perdidas ou do abandono familiar. Essa vida de incertezas e luta por laços e identidade é o cenário onde Marcelo Barbosa, psicanalista e morador de uma das maiores favelas da América Latina, constrói uma série de contos que exploram questões cruciais sobre saúde mental, identidade e os impactos da realidade na psique humana.

Barbosa, que entrelaça suas experiências de consultório com a vivência na favela, utiliza a figura do Requis para criticar a estrutura social brasileira, que marginaliza milhões de cidadãos. Em “A vida de cão do Requis”, o autor não só desmistifica o processo terapêutico – frequentemente cercado de preconceitos – como também utiliza uma linguagem coloquial e um ritmo fluido, interrompido por cortes narrativos que espelham a confusão interna do protagonista. A obra, repleta de momentos trágicos e cômicos, desafia os leitores a refletirem sobre a saúde mental e os espaços disponíveis para compreender as complexidades emocionais e psicológicas das pessoas.

Através da ficção, Marcelo Barbosa oferece um olhar penetrante sobre a subjetividade humana, profundamente influenciada pelas realidades de violência, desigualdade e desatenção para com a saúde mental. “A vida de cão do Requis” não apenas denuncia essas condições, mas também propõe um espaço de reflexão sobre como a sociedade pode e deve lidar com os sentimentos, emoções e processos psicológicos internos de seus cidadãos.

Como sua experiência como morador de uma das maiores favelas da América Latina influenciou a criação de “A vida de cão do Requis”? Você pode compartilhar algum exemplo específico dessa vivência que se reflete no livro?

A violência urbana! Morei três décadas em Heliópolis, zona sul de São Paulo, onde praticamente cresci com a construção da favela. Grilhagem, invasão, ocupação, esgoto, tiro, morte e busca por moradia foi tudo o que eu vivi nesses anos. Quando criança, diversas vezes, fui proibido de sair da minha rua porque os traficantes de drogas estavam brigando, muitas noites fiquei sem dormir com traficantes armados na laje de minha casa, vivenciei várias trocas de tiros entre traficantes e Polícia, e a mais impactante: com aproximadamente 10 anos de idade, estava jogando fliperama em um bar, e começou um tiroteio de metralhadora, onde todos do local saíram correndo. Eu fiquei paralisado! Quando estava saindo do ambiente eu vi um cara com duas metralhadoras. Ele estava gargalhando e olhou para mim. Isso nunca saiu da minha memória!

Requis é um personagem que questiona sua identidade constantemente. Como você decidiu sobre a escolha desse nome e a caracterização do protagonista, incluindo sua confusão entre ser cachorro, dinossauro ou pessoa?

Requis, como ficou conhecido, é um animal muito observador e questionador. Não conseguia achar normal o mundo ao seu redor e começou a se incomodar. Primeiro, pelo desrespeito que sempre sofreu por ter o seu nome mal pronunciado: De Rex, para Requis. O fato acontece principalmente quando gritam com ele: “Requis!”, “pega, Requis” etc. Mesmo corrigindo as pessoas, sua identidade era violada, igual o local em que morava.

Requis, um cachorro, vive na rua. Não tem moradia própria. Não sabe o que vai comer e beber, quando come, é do lixo, quando bebe, é do esgoto. Não é vacinado, não tem família e dignidade. Tem amigos que sofrem o mesmo que ele, onde parece ter força para sobreviver. Requis, um dinossauro, tem tamanho e força, mas vive em um mundo de matar ou morrer, onde não foi treinado e não tem apoio da família. Já Requis, o ser humano, vive na favela e acha sua vida indigna, uma vida de animal, de cão, sem sentido. Ele é esquizofrênico, não sabe qual é a sua realidade, o que é, ou, quais são.

Como você entrelaçou sua prática psicanalítica com a narrativa de Requis? Quais aspectos dos contos neuróticos refletem diretamente os problemas de saúde mental que você encontrou no consultório?

Pela minha origem, a rede de relacionamento que eu tenho envolve muitas pessoas que moram em comunidades pobres. Com isso, naturalmente, eu atendia pacientes desse contexto social. Em diversos casos, quando eles falavam sobre o período da infância, apareciam informações sobre a pobreza e violência sofrida na favela, que alguns casos, influenciavam nas questões que estavam sendo tratadas na terapia, e algumas vezes, aparecia as expressões: “Tenho uma vida de cão”, “minha vida parece de um animal” etc. Isso me levou para a etologia, estudo dos animais e dos seres humanos, onde percebi que o cachorro vira-lata, bastante comum nas comunidades, representava a própria favela em seus dilemas!

Seu livro faz críticas profundas à estrutura social brasileira. Quais são as principais mensagens que você espera transmitir sobre as desigualdades e violências nas favelas através da história de Requis?

Que ninguém deveria morar em uma estrutura urbana irregular no Brasil, essa correção histórica já deveria ter acontecido há muito tempo. Que os espaços sociais inadequados, além de sofrimentos físicos, causam doenças psíquicas, e que devemos ter uma agenda de cidade inteligente para as favelas com moradia digna.

Você mencionou o desejo de desmistificar o processo terapêutico. Que preconceitos sobre cuidados com a mente você encontrou e como “A vida de cão do Requis” aborda e desconstrói esses preconceitos?

Em geral, a ideia é mostrar que terapia não é coisa de louco, não é coisa de rico, que todas as pessoas precisam de tratamento e o quanto pessoas que moram em ambientes com estruturas irregulares, sofrem danos físicos e mentais. O Requis vai apresentar isso em toda a sua trajetória, clamando por justiça social e mental.

Marcelo Barbosa
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A obra é descrita como tendo um ritmo fluido e linguagem coloquial, mas com cortes na narrativa. Como essa estrutura e estilo narrativo contribuem para representar a confusão interna do protagonista e a complexidade da vida na favela?

A estrutura do texto foi pensada para levar o leitor a “incorporar” a vida do Requis ou ainda entrar na sua mente, sentir suas dores, medos, alegria-tristeza, comicidade e perplexidade, que envolve a vida que eu tive na favela.

“A vida de cão do Requis” mistura momentos trágicos e cômicos. Como você equilibra esses elementos para abordar temas tão sérios como violência e desigualdade, e qual é a importância desse equilíbrio para a narrativa?

As misturas de sentimentos e conceitos, representam a vida de um local irregular e violento. Quando se vivencia a mazela social, se aceita a morte ou procura alguma forma de ver alegria na tristeza, e nisso aparece o equilíbrio no texto.

Quais foram os maiores desafios que você enfrentou ao escrever este livro, especialmente ao tentar combinar suas experiências pessoais, as dos seus pacientes, e a necessidade de criar uma ficção envolvente?

Manter o sigilo de atendimento terapêutico dos analisandos. Por ética, não iria expor nenhum paciente, e ao mesmo tempo, pela similaridade de sofrimento psíquico, também estava falando de mim mesmo.

Como foi a recepção inicial do livro entre leitores e críticos? Houve alguma reação ou feedback que particularmente te marcou ou surpreendeu?

Essa é a minha quarta experiência literária. Antes de publicar eu apresento a obra para potenciais públicos e recebo o feedback ao qual imaginava. Em geral, ouço que o livro é muito “louco” e “doido”. O que mais me surpreendeu foi ouvir que o livro “é muito engraçado” A obra estava na gaveta. Estava esperando o momento certo e foi quando apareceu na minha cidade Ferraz de Vasconcelos, a Lei Paulo Gustavo, onde me inscrevi e fui selecionado.

Quais são seus próximos projetos literários? Pretende continuar explorando temas relacionados à psicanálise e realidade social brasileira em futuros trabalhos?

Estou produzindo um produto literário sobre preconceito infantil, onde vou beber muito da psicanálise. Mas, escrevendo devagar e sem pretensões. Estou um pouco cansado de falar de favelas, já que não tem mudanças mesmo, mas venho sentido que o formato de contos neuróticos pode ter continuação. O futuro dirá!

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