Em um mundo assolado por uma praga sanguinária e marcado por intrigas e decadência, a comandante mercenária Elena lidera a Irmandade dos Corvos em uma missão que vai além da sobrevivência: encarar os fantasmas de seu passado e enfrentar um mal ancestral. Assim começa Vidas Efêmeras: Parte I, romance de estreia do autor Luiz Gustavo Oliveira da Cunha, que combina fantasia sombria, dilemas morais e atmosfera filosófica inspirada em Lovecraft e Dostoiévski.
A Elena não é apenas uma líder militar, mas uma mulher dilacerada pela dor da perda e pela sede de vingança. Como foi para você construir essa personagem tão movida por sentimentos intensos e, ao mesmo tempo, obrigada a manter o controle diante do caos?
Bem, o método de construir um personagem não é algo tão objetivo e dirigido como um engenheiro civil que ergue um prédio ou como um engenheiro de software que produz um website. É um processo bem mais intuitivo e misterioso. Nada mais é do que uma ideia que surge e fascina, e por isso o autor a utiliza.
A praga vermelha transforma pessoas em criaturas sedentas por sangue, mas o verdadeiro mal parece vir de dentro — da culpa, da fúria, da memória. De onde veio a inspiração para essa dualidade entre ameaça externa e conflito interno?
Não se trata tanto de uma inspiração, mas de uma forma holística de compreender os conflitos humanos. A todo momento lidamos com conflitos de origem interna e externa, e apesar de que o primeiro tipo não é tão óbvio, não o torna menos nocivo. Na verdade, em muitos casos são os conflitos internos que nos entregam as maiores batalhas de nossas vidas. Dessa forma, quando conflitos internos e externos são expostos lado a lado na narrativa, acaba por tornar a história fascinante e empolgante, enquanto permite o leitor empatizar e aproximar-se dos personagens que a compõe.
Ao mergulhar em temas como decadência social, ancestralidade e o peso das decisões, sua narrativa parece querer mais do que entreter: ela provoca. Você se sente mais impelido a contar uma boa história ou a fazer o leitor refletir?
Uma boa história é sempre o objetivo, e deve continuar a ser o objetivo. Uma boa história entretem, mas ela também faz pensar, enquanto também mostra ao leitor um pouco de si mesmo. Logo, se o escritor tem a vontade de criar uma boa história, ele acaba por fazer tudo isso citado e um pouco mais. Porém, se ele tiver a vontade específica de passar alguma mensagem, muitas vezes ele falha em produzir uma boa história, e acaba também por falhar em passar qualquer mensagem.
O livro carrega influências claras de Dostoiévski e Lovecraft, dois autores que exploram os abismos da mente e do sobrenatural. Como essas referências ajudaram a moldar o universo simbólico e filosófico de Proélia?
As inspirações que tomei destes dois autores me renderam ótimos métodos para expandir a escrita de formas diferentes. Lovecraft me inspirou com sua exploração do medo do desconhecido e dos males que são maiores que a compreensão, o que acaba por se ver na temática do conflito principal do livro e da série. No capítulo de nome “O Homem da Caverna” o leitor verá essa inspiração de forma mais clara.
No caso de Dostoiévski, eu me inspirei bastante na forma em que ele explorou pequenos personagens que parecem pouco importantes, e na forma como ele chega a estudar em uma impressionante profundidade os espíritos de seus personagens principais. Eu creio que essa é a melhor forma de criar laço entre os leitores e os personagens de uma narrativa: expor, através de pensamentos íntimos e açõs explícitas, a alma de cada personagem de importância, como uma autópsia espiritual.

Você propõe uma fantasia que flerta com a filosofia — sobre identidade, justiça e a própria efemeridade da vida. Em algum momento, teve receio de que essa densidade pudesse afastar parte do público? Ou essa foi uma escolha consciente desde o início?
É um risco, é verdade, mas um risco que é preciso tomar. Eu sou da opinião que arte deve ser produzida como expressão pura da alma humana, qualquer coisa que interfere nisso deve ser imediatamente rechaçada. Por isso também sou um apoiador da ideia de que um artista, seja ele do tipo que for, precisa ter um emprego à parte, para que decisões de negócios não impactem a sua pura expressão. Obviamente, isso é apenas um ideal pessoal e uma recomendação, não se aplica a todos os casos e todas as pessoas. Mas, para mim, se a expressão não é pura e inadulterada em grande parte, eu tendo a evitá-la. Logo, tendo em vista essa moral pessoal, eu busco sempre expor o que me é verdadeiro, mesmo que sua forma possa afastar algumas pessoas. Não é muito diferente da forma como fazemos laços de amor e amizade.
A narrativa intercala ação, sonhos e monólogos, e isso parece afetar também o ritmo da leitura. Como você equilibrou o impulso de contar uma saga épica com a vontade de mergulhar fundo na psique dos personagens?
Eu creio que um elogia o outro, logo não há equilíbrio a ser feito. Imagine um dos grandes mitos da história humana. Pense na história de Hércules e nos seus doze trabalhos. Agora imagine que você o conhece pessoalmente. Você conhece seus pais, seus vizinhos, sabe o que lhe irritava quando criança, sabe quais brincadeiras faziam juntos, conhece suas histórias engraçadas e seus dias tristes, sabe como ele pensa e como age, tem uma boa noção de todo pensamento que correu por dentro de sua cabeça pela mera forma com que descrevem suas ações em cada descrição de seus atos. Isso não ergueria a história a um novo nível? A minha opinião é que sim, e é este novo nível que busco alcançar.
A relação entre o legado de Elena e o passado do pai cria uma tensão poderosa entre memória e destino. Você acredita que os fantasmas que carregamos nos definem, ou é possível escapar deles sem perder quem somos?
Eu creio que os nossos fantasmas fazem parte de nós, mas que é possível viver sem que eles tomem as rédeas de nosso espírito. Porém, para isso é preciso enfrentá-los. E esse confronto pode lhe custar muita coisa.
“Vidas Efêmeras” é uma fantasia sombria, mas carrega uma pergunta muito humana: o que torna a vida digna de ser vivida? No seu processo criativo, essa pergunta também te atravessou pessoalmente? O que você descobriu enquanto escrevia?
Certamente. No processo de escrever o livro eu me deparei com muitas versões dessa pergunta, e encontrei muitas respostas, mas nenhuma delas eu tenho confiança suficiente para ceder a você uma declaração tão firme e categórica. Eu digo apenas isso: o espírito humano é inacreditavelmente resiliente enquanto ele tiver uma resposta para a pergunta “Por que?”. E talvez, na resposta desta pergunta, é onde jaz toda a dignidade que necessitamos.
Acompanhe Luiz Gustavo Oliveira da Cunha no Instagram