Lucianno Di Mendonça transforma estátua de Drummond em viajante literário em novo romance fantástico

Luca Moreira
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Lucianno Di Mendonça (Estúdio Laurene Paranhos)
Lucianno Di Mendonça (Estúdio Laurene Paranhos)

Cansada de ser ignorada em seu banco à beira-mar em Copacabana, a estátua de Carlos Drummond de Andrade decide partir em uma jornada extraordinária pelo universo. Essa é a premissa do livro Na linha do horizonte está escrito um universo, do escritor Lucianno Di Mendonça, que costura 14 histórias interligadas por encontros literários e personagens surpreendentes, conduzidos pelo enigmático Velho Dru — uma figura que atravessa diferentes vidas e realidades levando poesia, reflexões e, principalmente, literatura.

Ao criar um universo literário onde a estátua de Drummond ganha vida, você nos convida a refletir sobre a solidão das obras de arte e a nossa própria. Como foi para você dar voz a algo que, por essência, é inerte?

A jornada do Velho Dru é uma viagem que começa na solidão, assim como, muitas personagens do livro, mas ao desdobrar das narrativas, as histórias tomam outro rumo. Quanto à estátua do Drummond, todos que tiram uma foto com ela, dão vida à estátua ao fazer uma pose “trocando ideia” com a escultura, isso é bonito e poético, mas denuncia uma solidão contemporânea. As pessoas fazerem pose conversando com a estátua, foi algo pensado, imagino, pelo artista que a produziu (Leo Santana). Veja que a estátua está do lado direito, virada para o vazio do banco, com a cabeça um pouco mais inclinada que a foto, isso sugere que alguém sente-se para uma conversa. Mas se você observar, na foto original (Rogério Reis) – que inspirou a escultura, Drummond está do lado esquerdo, com as costas para o vazio do banco e o olhar distante, ou seja, o poeta não queria muita conversa (uma leitura minha, apenas, dentre muitas possíveis). Logo, quando fiz a minha foto, a jornada já estava cravada no bronze, faltava dar-lhe vida talhando-a no papel.

Você constrói um romance espiral onde personagens migram entre as histórias, e nada começa ou termina de forma linear. Como essa estrutura reflete a forma como você enxerga a própria vida?

Até onde pesquisei, o termo romance espiral não existia, apesar que, na literatura isso não é incomum, por exemplo, o livro: Se um viajante numa noite de inverno, de Italo Calvino. A vida e o universo são espirais em muitos aspectos, desde a atração e afastamento dos planetas, estrelas e galáxias até um simples bater de asas duma borboleta, ontem, do outro lado da nossa rua. Na linha do horizonte está escrito um universo é espiral em muitos aspectos: a epígrafe de Borges que abre o livro, o início e o fim do romance, as personagens, os capítulos, o Velho Dru, o leitor, o autor. Um dos capítulos centrais e mais obscuros do livro: Remetente: Destinatário representa isso em suas primeiras e últimas linhas, mas de uma forma específica: a espiralidade e presença do passado e do futuro na mesma cena. Minha forma de escrever até um artigo de opinião é espiral, meu jeito de dialogar, essa entrevista, minha maneira de encontrar conexões não feitas (não reconhecidas) ainda, etc. É assim que vivo e vejo a vida.

O Velho Dru, que transita por papéis tão diversos, é quase um guia espiritual para os personagens – e talvez também para o leitor. Como você se vê na figura do Velho Dru: como autor, como observador ou como participante dessa jornada?

Tenho dito que o Velho Dru é um Virgílio (Divina Comédia) pós-moderno, ou seja, ele não pega na mão, não oferece proteção, não indica caminhos, mas é a espiral entre a crueza da vida na terra e a poesia da lua. Desta forma, na espiralidade do romance e da vida, o planeta Terra não está distante, tampouco desligado da lua. Pelo contrário, a lua tem parte direta e fundamental na vida da terra, ainda que nela própria não haja vida. Por isso, o Velho Dru representa a conexão de coisas que muitas pessoas dão por distantes, inatingíveis ou até inúteis. Penso que cada ser humano pode ser um Velho Dru em seus próprios universos em conexão com universos de outras pessoas. Todo leitor é um Velho Dru, assim como eu e você, Luca, dois Velhos Luz, talvez. Desta forma, eu, você e o leitor somos não somente autor, entrevistador e coautor, somos participantes dessa jornada.

No livro, você mostra como a leitura e a literatura podem transformar o cotidiano em fantasia, bastando exercitar o olhar. Qual foi o maior desafio que você encontrou ao criar essas conexões entre o extraordinário e o ordinário?

Kafka dizia que tudo que não é literatura o aborrecia, isso vai além de textos gráficos, evidentemente. Essa é uma questão fundamental no livro (e na minha vida): “qual é o limite entre o extraordinário e o ordinário?”. Naturalmente são duas coisas distintas, senão eu apresentaria traços fortes de esquizofrenia, porém, para mim, não há limites claros entre as geopolíticas da ficção e da realidade. A questão é que muitas pessoas saem do ordinário e vão para o extraordinário, ao ler um livro, por exemplo: “agora vou me abstrair da realidade e viajarei um pouco através de uma boa história”; outras fazem um caminho diferente: “agora lerei um livro para seguir viagem com outras companhias”, isso faz total diferença! Quando terminei a leitura de Dom Quixote fiquei em choque e foi difícil sair de um estado depressivo nos dias seguintes à leitura. Quixote, para mim, é a maior referência desse conflito entre o ordinário e o extraordinário. Na linha do horizonte está escrito um universo trata disso, mas o capítulo Festa Literária Interplanetária dos Corcundas é incisivo quanto à essa questão da realidade na fantasia por meio do olhar. Tanto que, toda as vezes que o releio, não consigo conter as lágrimas, é como se eu estivesse lendo esse capítulo pela primeira vez e o autor é outra pessoa (e sou mesmo). Dito isso, tive grandes dificuldades para escrever esse livro (foi a minha jornada), mas encontrar a conexão entre o factual e o ficcional, não foi um desafio.

A intertextualidade é uma marca forte na obra, com referências a Drummond, Borges, Shakespeare e outros mestres da literatura. Por que você acredita que é importante revisitar e homenagear essas vozes clássicas em meio a uma narrativa tão contemporânea?

No poema Eterno, Drummond diz: “Eterna é a flor que se fana se souber florir”. Esse verso é a fusão entre o efêmero e o infinito: o transitório ininterrupto. Dentre inúmeras características, algo que, para mim, torna um livro clássico ou canônico é ele ser reproduzido em outras obras, ainda que as pessoas que escreveram (inspiradas nos clássicos) não saibam de onde tiraram aquelas ideias. O leitor também pode tomar conhecimento da ideia de um clássico sem ler um clássico. Por exemplo, assistindo a um desenho animado, alguém pode ter acesso a Alegoria da caverna, de Platão, por meio de um personagem que vive numa caverna e acha que toda a realidade do mundo é aquilo que ele vê e vive nas sombras. Assim, de alguma forma, todos se encontram com os clássicos nalgum momento, sendo assim, melhor dedicar-se um pouco mais às fontes. Penso que quanto mais lermos os clássicos e os contemporâneos (que não são cópias de cópias), mais teremos condições de sermos singulares em nossas criatividades e linguagens. Assim, podemos reverenciar os clássicos e produzir algo único, ao mesmo tempo. Enfim, os clássicos nos ajudam a fanar e a florir.

No fim do livro, você apresenta as referências citadas como um convite para os leitores continuarem a explorar a literatura. Você acredita que cada leitor faz sua própria viagem literária, e como espera que seu livro inspire esse movimento?

Não existe leitura literária passiva, então, gosto da sua palavra espiral que encerra sua pergunta: “movimento”. Na linha do horizonte está escrito um universo não aponta para si mesmo, seu fim está além dos próprios horizontes gráficos, extrapola para o universo de outras leituras, da literatura universal e da vida mediada pela fabulação – termo usado pelo sociólogo e crítico literário Antonio Candido para se referir à ficção como o núcleo da vida, por onde toda a realidade orbita ao redor. Assim, fico feliz quando alguém elogia meu livro, mas se uma pessoa diz que se tornou leitora de literatura por meio da minha obra, ou desejou ler mais, ou fabulou suas próprias histórias contando-as junto comigo no livro, entendo que, minha “missão” como autor foi atingida nela e em mim. Assim, hipoteticamente, se uma leitora diz que amou o meu livro e nunca mais leu um livro de literatura, terei dúvidas de que natureza é esse amor.

Você utiliza o Velho Dru para alterar o curso da vida das pessoas por meio de conversas, gestos e conselhos. Como você acha que as palavras — ditas ou escritas — podem transformar, de fato, a realidade de quem as lê ou escuta?

Essa pergunta me intriga, não tenho resposta objetiva para essa questão. Fato é que a leitura de literatura muda vidas, mas como? Muito tem se falado a esse respeito, talvez já tenha sido dito o suficiente, mas ainda quero estudar mais e articular ainda alguns escritos quanto a esse ponto, daí esse ter sido o tema de minha dissertação de mestrado e ainda pretendo seguir no doutorado na mesma temática. Por outro lado, não levanto a bandeira da leitura, não sou militante da literatura, ela não precisa de mim, não precisa de ninguém. A bandeira da literatura é a vida em estado permanente de espanto, ainda que nas solidões compartilhadas entre autor (escritor) e coautor (leitor). Faço literatura por puro êxtase, e também por não conseguir não a fazer, penso que isso torna a coisa mais leve e divertida, tanto para mim quanto para quem me lê e me ouve. Enfim, como disse Shakespeare em Timão de Atenas: “o mundo não é mais que uma palavra”. Na linha do horizonte está escrito um universo há uma cena no capítulo Jardineiro cego, na qual Borges como personagem, elucida isso. Por isso, ler literatura tornando-se travessia para as palavras, os personagens e as histórias é transformar-se naquilo que se é.

 “Na linha do horizonte está escrito um universo” propõe uma grande viagem para dentro de si. O que você espera que o leitor encontre nessa viagem: respostas, perguntas ou, quem sabe, novos horizontes para recomeçar?

Uso o termo jornada para referir à saída do Velho Dru do banco a sua ida à lua, contudo, a palavra travessia seria tão boa quanto, com a particularidade de não marcar fortemente a ideia de um início, meio e fim. Travessia se encaixaria melhor na ideia de espiral, ou seja, algo que, por meio da qual, pode-se ir e voltar, porém, na volta se coloca num espaço-tempo um pouco diferente, um pouquinho à frente ou atrás, acima ou abaixo, um tanto expandido. Borges tinha uma questão com a espiral, e isso se refletia nos seus textos. Borges também reinventou o leitor, dando-lhe proeminência na obra, dizendo, inclusive, da coautoria do leitor naquilo que ele lê, atribuo isso à espiral da leitura ou espiral borgeana. Sim, cada leitor faz sua própria viagem ao ler a realidade de outras vidas inventadas, uma viagem do eu para si, muitas vezes um “eu” desconhecido ou inexplorado. Enfim, não proponho, como finalidade última, perguntas ou respostas, apesar delas ocorrerem, minha pretensão é muito maior, descabida, delirante: espero que o leitor se desabroche na flor drummondiana, na rosa dos povos, a eterna flor que se fana, se reduz em tamanho, se murcha, se amputa, se corta, se sangra, se expande e se multiplica porque aprendeu a florir.

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