Diante do crescimento da presença cristã no debate público, o linguista e pós-doutor Lucas Nascimento lança O veneno da língua: O desafio evangélico de falar a verdade sem ferir (Editora Mundo Cristão), obra que questiona o uso irresponsável da linguagem por líderes religiosos. A partir de episódios de discurso de ódio, xenofobia e intolerância, o autor propõe uma comunicação ética pautada pelo respeito, justiça e sensibilidade aos contextos de vulnerabilidade — princípios que, segundo ele, deveriam nortear toda fala cristã.
Você traz no livro uma reflexão sobre o contraste entre o discurso cristão e falas que, muitas vezes, ferem em vez de acolher. Como você enxerga essa contradição sendo reproduzida nas igrejas hoje — e o que te levou a abordar esse tema de forma tão direta?
Infelizmente, a história das igrejas cristãs está cheia de contradições, e, em determinadas épocas, algumas ficam mais evidentes. Nesta época, a fala pública de muitos cristãos no Brasil tem mostrado mais arrogância e julgamento moralizante do que proclamação do Evangelho do Reino. Muitos estão confundindo o anúncio do Evangelho com a propagação de um moralismo evangélico motivado por ideologias moralistas e políticas. Na minha visão, isso é contrário ao espírito do que Jesus nos ensinou e revela que muitos cristãos não estão amando nem mesmo os irmãos na fé, muito menos os “inimigos”.
Estudo o discurso religioso evangélico há mais de 15 anos, e, de alguns anos para cá, tenho observado que os irmãos e irmãs têm tido prazer em falar para ferir e humilhar em nome de Deus. Ao ver isso escalar, resolvi estudar como tais coisas têm se dado, a fim de compreender melhor o fenômeno e propor um caminho de sabedoria para os que assim o desejarem.
A expressão “veneno da língua” é forte e carrega um peso simbólico importante. Por que você escolheu esse título e de que forma acredita que ele provoca uma autorreflexão necessária nos leitores cristãos?
A metáfora da língua peçonhenta é rica, e o meio-irmão de Jesus, em sua carta, a utiliza para mostrar o poder maligno da comunicação feita de forma perversa. Ele diz: a língua “é incontrolável e perversa, cheia de veneno mortífero” (Tiago 3.7). Quando escolho esse título, penso que há uma fonte de sabedoria, vida e paz disponível para os cristãos fazerem jorrar por meio de sua comunicação. Distante dessa fonte, a língua do crente também pode se tornar um veneno mortífero, ainda mais se o coração de quem a utiliza está cheio de “inveja amarga e ambição egoísta”.
Como digo no livro, os cristãos precisam compreender e refletir que sua comunicação pode produzir vida, mas também pode produzir morte. E, infelizmente, isso tem acontecido da boca de muitos evangélicos e de instituições cristãs nos últimos anos no Brasil.
No livro, você propõe a ideia de “presunção de humilhação” como um critério ético para avaliar o impacto da fala. Como você imagina que esse conceito pode ser incorporado no dia a dia de quem deseja comunicar com mais empatia e responsabilidade?
A noção de “presunção de humilhação”, que tomo emprestada do filósofo israelense Avishai Margalit, é um convite à sensibilidade ética no uso da linguagem, especialmente em contextos assimétricos. Ao adotar esse critério, propomos que, diante da dúvida, o benefício da interpretação deve ser dado a quem historicamente tem sido mais exposto à dor simbólica, a exemplo de minorias e grupos vulneráveis, como os LGBTI+, os negros, os desabrigados, os indígenas e tantos outros. Isso não significa abrir mão do que se acredita ser verdade ou da crítica, mas reconhecer que nem toda crítica é justa apenas por ser verdadeira.
No dia a dia, essa perspectiva pode ser praticada com pequenas mudanças: perguntando-se, antes de falar, “se eu estivesse no lugar do outro, como eu receberia essa fala?” ou “isso que estou prestes a dizer é necessário, edificante e dito com misericórdia?”. Jesus nos chama à verdade, mas a uma verdade temperada pela graça. Incorporar esse critério é, portanto, um exercício constante de empatia, autodomínio e temor; não medo do outro, mas reverência ao fato de que cada ser humano carrega a imagem de Deus e merece ser tratado com dignidade, mesmo no desacordo.
Você menciona episódios de discurso de ódio e estigmatização contra grupos vulneráveis por parte de líderes religiosos. Como você responde àqueles que usam a fé como justificativa para falas ofensivas, alegando apenas “falar a verdade”?
O ser humano tende a fugir de suas responsabilidades. Muitas vezes, a ciência, o Estado, as leis e, especialmente, Deus ou as Escrituras são utilizados como mecanismos de fuga, servindo para encobrir intenções perversas ou justificar a prática de iniquidade contra o outro. Infelizmente, muitos cristãos falam em nome de Deus, mas expressam mais rancor e vaidade do que compaixão e verdade. Alegam “estar apenas falando a verdade”, quando, na verdade, estão encenando um tipo de justiça que não tem nada de evangélica.
O teólogo alemão Dietrich Bonhoeffer, do século passado, morto por Hitler, foi profundamente sensível a isso. Ele nos advertiu sobre os perigos do que chamou de “meia-verdade” — aquela que se apresenta como pura e objetiva, mas desconsidera o contexto e a relação. Para ele, há uma diferença ética entre o conteúdo da verdade e o ato de dizê-la. Quem diz “a verdade” de forma fria, insensível e fora de tempo, desonra a verdade que diz carregar. Bonhoeffer chega a afirmar que aquele que insiste em falar de modo implacável e igual com todos, sem levar em conta a relação, o momento e a condição humana, se aproxima mais do cínico do que do profeta. Essa pessoa se sente “como um Deus acima das criaturas fracas” e destrói “a verdade viva entre as pessoas”.
A verdade do Evangelho é sempre encarnada, atravessada pela misericórdia. O Cristo que disse “eu sou a verdade” também foi aquele que perdoou a adúltera, chorou com os enlutados e tocou os intocáveis e miseráveis da época. A fala cristã que não se deixa mover por essa misericórdia talvez esteja apenas usando o nome de Deus para perpetuar privilégios, medos e ódios — o que, no fundo, é uma forma perversa de idolatria. Embora eu não mobilize o conceito de discurso de ódio, posso afirmar que o ódio tem sido o sentimento que caracteriza as falas de muitos irmãos e irmãs evangélicos. Será que estamos sendo reconhecidos pelo amor?

Entre as competências que você propõe, ouvir diferentes pontos de vista antes de formar uma opinião é a primeira da lista. Na sua opinião, por que o “ouvir” se tornou um desafio tão grande na era da polarização e da comunicação imediata?
Hoje as pessoas tendem a ouvir apenas o eco de sua própria voz religiosa, ideológica ou política, em vez da voz do outro. Isso não é diferente entre os evangélicos. As redes sociais amplificaram esse fenômeno, que os especialistas chamam de bolha de filtro ou câmaras de eco. Tem imperado a lei da tribo, do meu grupo, da minha ideologia ou da minha teologia. A polêmica virulenta tem reinado. Não há disposição para escutar de fato o diferente, muito menos o divergente. Isso é um problema sério, pois acirra ainda mais a divisão e a falta de compreensão.
A compreensão depende de um movimento de ida ao mundo do outro, escutá-lo, sentir o que ele sente, para então sair e voltar a si. Daí nasce a compreensão. Contudo, para uma mente polarizada, esse movimento não acontece. Ela olha o outro de fora, sem escutá-lo de verdade, sem empatia. Isso gera incompreensões e aumenta ainda mais as distâncias entre as pessoas. Mas essa não deve ser a atitude do cristão. Fomos chamados a adentrar o mundo do outro, como Cristo fez ao entrar no nosso mundo. Mas isso requer humildade, disposição para servir e amor. Comunicação sábia não se faz sem humildade e amor ao outro, portanto, não se faz sem escuta.
Seu trabalho une linguística e espiritualidade de maneira muito singular. Como tem sido a recepção do seu livro tanto no meio acadêmico quanto no meio evangélico? Você sente que há abertura para esse diálogo?
Há uma abertura interessante. Quando falo sobre o tema em palestras ou aulas em universidades, os colegas acadêmicos ficam bastante interessados, pois estão carentes de compreender o que está acontecendo no espaço público com a presença dos evangélicos.
Muitos deles conhecem pouco as pesquisas sobre os evangélicos.
No meio evangélico, ainda estou experimentando os resultados dessa relação entre ética discursiva e espiritualidade. Ao mesmo tempo em que tenho recebido uma recepção calorosa e acolhedora em alguns círculos cristãos, percebo também suspeitas e reticências em outros. Mas ainda está muito cedo para tirar conclusões (risos). O importante é cumprir o chamado de anunciar.
Falar com clareza, ajustar o tom e escolher bem as palavras são habilidades que parecem simples, mas exigem muito cuidado. Em sua trajetória como professor e pesquisador, o que você tem aprendido sobre o poder — e o perigo — das palavras mal colocadas?
As palavras não têm poder em si mesmas. Seu poder advém de um conjunto de fatores discursivos (subjetivos, sociais e institucionais). Isso, junto, pode criar impérios, e assim tem sido a história dos grandes impérios ao longo dos séculos, mas também pode destruí-los ainda mais rápido. Para além dos elementos espirituais específicos, as religiões são construções simbólicas, as quais são produzidas na e pela linguagem.
Gosto de falar em palavras malditas. Esse duplo sentido diz respeito ao fato de que a comunicação malfeita pode iniciar guerras, destruir reinos e criar o caos para pessoas, grupos e instituições. Os cancelamentos nas redes sociais são uma pequena prova disso.
Desenvolver a capacidade de saber o motivo que move o dizer, o que dizer, como dizer e quando dizer no momento adequado, com sabedoria, é fundamental para que as palavras não sejam apenas palavras, mas boas obras.
Você convida os leitores a assumirem o compromisso de uma linguagem que reflita o amor, a justiça e a sabedoria. Para quem deseja começar essa transformação na forma de se comunicar, qual seria o primeiro passo que você recomendaria?
O primeiro passo pode ser uma consciência profunda da importância da linguagem na vida. Podemos fazer isso observando três dimensões.
Primeiro, é preciso entender que palavras não são apenas palavras. Elas são ações no mundo. Com elas, abençoamos ou amaldiçoamos, curamos ou ferimos, damos vida ou construímos a morte. Pela palavra, o mundo foi criado; e no centro da fé cristã está o Verbo que se fez carne. Falar, portanto, é agir; e nossas palavras podem (e devem) ser boas obras, como nos ensinou Tiago 3.
Segundo, precisamos reconhecer que toda palavra tem impacto. Às vezes, uma frase que nos parece simples pode abrir feridas antigas, reforçar traumas ou humilhar silenciosamente. Outras vezes, uma escuta generosa ou um elogio verdadeiro pode reerguer alguém, como diz Salomão: “Palavras bondosas são como mel: doces para a alma e saudáveis para o corpo”. A palavra tem poder terapêutico ou destrutivo – e essa consciência muda a forma como nos comunicamos e como amamos.
Por fim, é necessário observar a motivação por trás do que dizemos ou calamos. Como escrevo no livro, nossas falas podem ter ao menos três fontes: da estratégia, quando falamos para obter resultados; da consequência, quando falamos por impulso ou por medo; ou da virtude, quando falamos por integridade e amor. Pergunte-se: por que estou dizendo isso? Qual desejo me move?
A partir dessa consciência tripla, o próximo passo é cultivar as virtudes da fala. Desenvolver uma linguagem que reflita o Reino de Deus: justa, amorosa, pacífica. Uma fala que seja, ao mesmo tempo, verdadeira e cheia de graça.
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