O debate em torno do uso ético e legal da Inteligência Artificial (IA) ganha destaque com a proposta do Projeto de Lei 4025/23, apresentado pelo deputado Marx Beltrão. Em meio a discussões sobre direitos autorais, imagem e propriedade intelectual, a iniciativa visa trazer clareza para questões delicadas envolvendo a criação e o uso de obras geradas por IA. Neste contexto, a advogada Thereza Castro, com foco em direitos autorais e estrategista de inovação para o mercado literário, traz insights valiosos sobre as implicações legais e éticas desse cenário em constante evolução.
Você poderia explicar como o Projeto de Lei 4025/23 proposto pelo deputado Marx Beltrão aborda o uso de inteligência artificial em relação aos direitos de imagem de pessoas representadas por IA?
O projeto de Lei 4025/23 propõe que a manipulação da imagem de uma pessoa por inteligência artificial dependa de sua autorização expressa, ou seja, é necessário manifestação da pessoa em concordância para que seja possível fazer uma manipulação de sua imagem. Há de se frisar que estamos falando do ato de manipular, em primeiro ponto, nem chegamos aos desdobramentos patrimoniais do produto. Apenas para criar uma manipulação em cima da imagem de alguém, quem quer que seja, é necessário que a pessoa autorize. Ainda, dispõe o projeto que quando se trata de pessoa falecida, ou ausente, o rol daqueles que poderiam dar essa autorização, seriam apenas os cônjuges, os ascendentes e os descendentes.
Como você vê a importância da autorização prévia para o uso de imagem de pessoas por IA, especialmente no contexto do surgimento de deep fakes, como no caso da propaganda da Volkswagen com Elis Regina?
A inteligência artificial nos trás desafios novos, assim é necessário, pensando na segurança de todos e o bom uso da ferramenta, que a legislação acompanhe e abarque as possibilidades da inovação, por isso a autorização, que é apenas um pequeno passo em meio ao mar de questões em torno da IA, é essencial.
Temos de lembrar que anteriormente a autorização para uso de imagem de pessoa, a ser captada, ou uso de existente, já existia, porém a IA tem outros horizontes, possibilitando produzir imagens da pessoa que nunca aconteceram, como no caso da propaganda com Elis Regina.
Embora o uso feito pela Volkswagen na propaganda tenha, como dito na época, contado com a autorização da família da falecida cantora, ele chama atenção para a fidedignidade que a IA é capaz de produzir. E quando pensamos sobre isso, regular a autorização é apenas a ponta de um imenso iceberg, a qual já deveríamos ter passado há tempos. Urge a necessidade de regularmos a utilização da IA amplamente, apenas em relação a imagem estamos falando da possibilidade concreta de usos éticos e não éticos de uma ferramenta que pode fazer de uma imagem realista o bastante para inspirar crença, o que é um perigo potencial em diversos níveis.
O projeto de lei propõe a necessidade de remuneração para as obras protegidas por direitos autorais utilizadas no treinamento de IAs generativas. Qual é a importância dessa proposta e como ela pode afetar os detentores desses direitos autorais?
Este também é um ponto bastante importante, visto que a IA generativa precisa se utilizar de banco de dados para gerar suas respostas, e treinar-se a cada vez para uma maior assertividade. Ou seja, se utilizar um livro protegido por direitos autorais para pedir a IA que gere uma resposta, cuja explicação conceitual se encontra ali escrita, não há nenhuma remuneração envolvida ao detentor.
Parece básico dizer que se quero utilizar o trabalho do outro preciso remunerar essa utilização, caso o detentor não a tenha posto a livro acesso, certo? Mas não é o que ocorre no momento, dessa maneira esse ponto da proposta é de suma importância para os detentores, que afinal, devem ser remunerados por aquilo que produziram como autores, inclusive, tendo essa regra futuramente em vigor as empresas donas das IAs precisarão esclarecer e classificar os dados que utilizam, dando mais clareza ao que estão usando, aliás, como a IA uma vez treinada não esquecerá o que aprendeu, é razoável que pensemos no período em que se utilizam tais obras sem contrapartida.. Regras deverão vir dessa disposição para que ela seja aplicada de forma efetiva.
Em relação aos direitos autorais das obras geradas por IAs, o projeto de lei estabelece que elas não gozam de proteção autoral. Como você vê essa decisão em termos de proteção dos direitos dos criadores dessas obras?
Este ponto em verdade é, a meu ver, a falácia do projeto. Pois ela mantém a disposição da Lei de Direitos autorais (9.610/98) ao estabelecer que somente pode ser autor a pessoa humana, já que estamos falando de criação de alma. Ele também mantém o ponto de que a pessoa jurídica poderá gozar da proteção dos termos da Lei citada, o que ocorre quando uma empresa ou organização representa a coletividade de pessoas autoras, por exemplo. No entanto, as obras produzidas através de IA estão sendo publicadas, amplamente, pelas pessoas que imputaram a ela um comando. Seriam então essas obras detidas por esses seres humanos? O projeto não nos dá a resposta. E se pensarmos que a IA na verdade se vale de banco de dados onde temos obras de fato produzidas individual ou coletivamente por pessoas humanas, sem uso de IA, obras essas protegidas por direito autoral, isso se torna ainda mais nublado, pois a geração do produto não se valeria talvez de trechos ainda que modificados destas obras? E essa, e muitas outras respostas dependem da interpretação do que a IA é ao final e qual a ingerência o imputador do comando tem, ou não sobre o produto gerado.
Em suma, não é exatamente isso que a disposição do projeto diz, ele apenas diz que o produto gerado não pode ser atribuído a autoria a IA, mas não determina se poderia ser ou não atribuído ao imputador do comando. Nisso, te retorno a questão, quem você está chamando de criadores dessas obras? Pois essa resposta também esta embutida de um pensamento do que a IA é de fato e do papel daquele que a ela da comandos.
Partindo do ponto que o produto gerado por IA não goza de proteção de autor, e que o imputador humano de comando esta apenas apertando teclas, então tudo que se gera na IA seria de livre uso, o que parece um problema pra aqueles que em algum momento possam ter entendido de forma diferente ao adquirir uma licença.
No cenário internacional, existem diferentes abordagens para lidar com os produtos gerados por IAs generativas. Você poderia explicar as principais correntes de pensamento e como elas se relacionam com o projeto de lei proposto?
Sim, não há uma unanimidade sobre como lidar com a IA, bem como não há em como lidar com o produto de sua geração. A Europa com suas recentes mudanças legais no que vem sendo chamados de Ato Europeu sobre IA é a que parece estar de fato ampla e seriamente discutindo a respeito. Entendemos que hoje existem visões distintas sobre a IA e o papel do ser humano que a usa, quando se diz respeito aos direitos sobre o produto gerado por essa interação.
Uma das correntes propõe que embora a criação autoral seja da alma humana subsistiria proteção patrimonial para o detentor da ferramenta, assim os conteúdos deveriam ser licenciados. Aqui temos um entendimento de que o desenvolvedor criou uma máquina complexa capaz de entregar resultados criativos, e os comandos do ser humano não tem tanta ingerência sobre esse ponto, sendo um apertar de botões.
Na segunda visão temos uma falta de proteção autoral geral, nem da máquina nem do ser humano que imputou o comando. Esse parece de início uma corrente seguida pelo projeto. Nesse caso a máquina é desprovida de alma, por mais complexa que possa ser, e o ser humano não tem contribuição fundamental de alma e criatividade sobre produto final. Poderíamos entender então um uso livre do resultado.
Uma terceira não concede também proteção autoral, mas limita o produto ao uso geral ao passo que entende que o detentor seria o ser humano ou empresa que imputou os comandos e pagou pela licença do software, esse então seria aquele que poderia explorar o resultado gerado pela IA. Nessa visão temos a IA como uma ferramenta, próxima do que vemos para outros softwares, como pacote office, pagamos para usa-los, mas o que geramos nele é em primeira analise quem está pagando pelo uso.
Você concorda que a análise dos direitos envolvidos nos produtos da IA seria mais efetiva se discutida caso a caso? Como isso poderia afetar o uso seguro da IA em diversas áreas?
Entendo que haverá casos em que a análise individual será necessária, o ponto é extremamente complexo e seus desdobramentos podem ser ainda mais, por isso, mesmo uma legislação que tente regular todas as possibilidades irá falhar, mas ela deve existir para nortear, a análise de caso surgira, sem dúvida, como necessidade, quando as regras norteadoras não forem suficientes para a situação fática que se apresentar.
O que não podemos, no entanto, é operar na ausência dessas regras gerais, que só virão por um debate amplo e seria sobre a tecnologia que já se apresenta a nós. Embora a legislação existente seja ampla, ela não alcança muitas das possibilidades e desafios que a IA já nos dá, o que gera insegurança não só pela falta de clareza da aplicação do que já existe sobre essa nova tecnologia, como também por possíveis usos de brecha legal para o que não se alcança atualmente pelas leis existentes. Vamos lembrar de um dos princípios fundamentais da nossa Carta Magna que visa trazer segurança, mas que também obriga o legislador a estar em conformidade com os tempos que se apresentam, o art. 5, II da Constituição Federal Brasileira dispõe: “Ninguém será obrigada a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude da lei”.
Qual é a importância de estabelecer regras claras para o uso e exposição de IAs em relação aos direitos autorais e de propriedade intelectual?
É importante para que possamos ter um uso seguro, ético e transparente dessa tecnologia, garantindo que todos saibam o que estão usando, que os bancos de dados não violam direitos, como e quando se pode ou não utilizar os produtos gerados pela ferramenta de IA, que se for usada, ao se apresentar um produto com seu uso, fique claro que este ocorreu, não se confundindo a criação com essa interferência daqueles que não a utilizaram. Ou seja, as regras trarão segurança e um tratamento justo para todos os envolvidos.
Você acredita que a evolução da tecnologia IA torna mais difícil a análise dos direitos relacionados aos produtos gerados por ela? Como isso afeta os profissionais envolvidos e os direitos sobre a criação?
Sem dúvida, uma vez que a IA se aprimora fica mais difícil detectar sem uma exposição clara, que houve o uso da ferramenta seja na criação de imagens ou na composição de texto, por exemplo. Se isso não é claro, damos a possibilidade de avaliarmos duas coisas distintas com o mesmo peso. É importante, ao apresentar um trabalho, por exemplo, que as regras sejam iguais, então se há possibilidade de uso de IA ela deve ser estendida a todos, se não há então ninguém pode usar. Esse pressuposto garante que todos se sintam em justiça, tratados da mesma forma, e partindo de um ponto mais ou menos igual. Se não estabelecemos normais anteriores, alguém poderia apresentar um produto como seu e, tendo uma IA altamente desenvolvida, afirmar ou detectar o uso da IA seria praticamente impossível sem uma analise muito profunda, o que passaria uma informação falsa e daria uma vantagem injusta.
O recente caso da desclassificação de uma obra do prêmio Jabuti devido ao uso de IA para a geração de sua capa levanta questões sobre o que queremos englobar em relação ao uso da IA. Como você vê esse caso em termos do futuro do uso da IA?
O caso é uma ilustração do que coloquei na pergunta anterior. Se estamos avaliando uma capa que teoricamente foi gerado somente pela criatividade humana, não é justo que tenhamos uma que se utilizou da ajuda da máquina avaliada com os mesmos critérios. Entendo que a decisão de desclassificação foi realizada de forma a garantir um olhar de igualdade e justiça sobre os competidores, e já demonstra a dificuldade em detectar essa utilização, permitindo que isso não fosse visto até um ponto avançado da avaliação, isso aponta a necessidade premente de regras, e também demonstra que possivelmente, tendo esses regramentos, teremos uma distinção entre o que foi feito com a máquina e o que não foi, garantindo um tratamento em equidade em situações semelhantes.
Considerando a complexidade e as possíveis ramificações do uso da IA, quais passos você sugere para aprimorar o tratamento legal e ético da IA nos próximos anos?
É essencial que discutamos como sociedade o nosso entendimento sobre a IA e disciplinemos o seu uso, isso irá garantir que consigamos lidar com os futuros desdobramentos da tecnologia, que já se apresentam de forma muito rápida, com um mínimo de norte, para de tempos em tempos nos debruçarmos sobre esse tema novamente, e afastarmos, o quanto possível, os usos que ferem os direitos individuais e fundamentais do ser humano.
Temos de discutir e regrar esse ponto inclusive para podermos inovar com seu uso de forma seguro, sabendo o que será das novas criações, o que se pode fazer ou que pontos devemos nos atentar, e para que rapidamente possamos coibir utilizações equivocadas da tecnologia.
Afora isso, enquanto continuarmos parados a discussão ética também fica parada, deixando nossa sociedade atual e as futuras gerações que hoje se educam, despreparadas para enfrentar esse futuro, ou convivendo com um futuro sem balizas claras, futuro esse que corre tão rapidamente em nossa direção.
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