Edison Reis poromove releitura entrelaçando orixás e a Guerra do Paraguai através da literatura

Luca Moreira
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Edison Reis
Edison Reis

Entre batalhas terrenas e forças ancestrais, Edison Reis estreia na literatura com “Fernão e a Epopeia da Coluna dos Pretos”, uma fantasia histórica que resgata o protagonismo negro na Guerra do Paraguai e revisita a espiritualidade dos orixás para recontar uma história que o Brasil esqueceu.

Esse é um romance que mistura espiritualidade, ancestralidade e guerra. Como nasceu em você a vontade de unir o épico histórico da Guerra do Paraguai ao imaginário dos orixás e das tradições afro-brasileiras?

Foram várias as inspirações, tudo começou com uma aula de literatura do meu professor Geraldo que trouxe para uma aula, um texto de jornal. Era um anúncio de venda da página de classificados da época. O texto vazia descrição de um escravo jovem, que sabia contar, era manso, tinha todos os dentes, era forte e poderia trabalhar tanto na roça quanto na casa grande. Isso me fez imaginar um leilão de escravos ao ar livre, e o que sentia o jovem escravizado, revolta, dor, inconformismo. Acho que esse foi o embrião. Anos depois, li um pouco do que se sabe sobre os Zuavos da Bahia, esse foi o ponto de partida, a incorporação da espiritualidade veio em seguida como uma necessidade própria de contar a mitologia dos orixás e da religião, as tradições que atravessam o tempo, o modo como a força espiritual sustenta o povo negro em todos os combates, visíveis ou não.

O épico histórico e o imaginário dos orixás acabaram se encontrando de forma natural. A guerra me deu o cenário. A ancestralidade me deu a alma da história. E a espiritualidade entrou naturalmente.

Fernão é descrito como um herói forjado pela dor, mas guiado pela coragem. Qual foi o maior desafio emocional de criar um protagonista que carrega, ao mesmo tempo, o trauma da escravidão e o destino de liderar uma epopeia espiritual?

Fernão nasceu dos sentimentos que eu tive ao ler aquele texto na aula de literatura. Ele não do inconformismo com a realidade, da necessidade de um modelo de herói trágico que atende a um novo chamado e entrar no jogo de Exu.

A obra resgata o papel dos negros — especialmente os Zuavos da Bahia — em um conflito muitas vezes apagado da narrativa oficial. Qual sentimento você teve ao perceber, durante sua pesquisa, o tamanho dessa lacuna histórica?

Eu senti um misto de indignação e responsabilidade. Indignação por perceber como a presença dos negros na Guerra do Paraguai foi empurrada para as margens, tratada quase como detalhe, quando na verdade eles foram a força decisiva no conflito. A coragem, a disciplina e o protagonismo desses homens mereciam estar no centro da narrativa, não escondidos no rodapé da história.

Ao mesmo tempo, veio a responsabilidade. Quando a gente encontra uma lacuna desse tamanho, entende que não dá para fingir que ela não existe. Eu senti que precisava honrar essas vidas, dar nome, corpo, voz. Trazer de volta um orgulho que, por muito tempo, foi negado. Escrever sobre eles foi um gesto de reparação, mas também de afirmação: eles estiveram lá, lutaram, sangraram e morreram. A história do Brasil só fica completa quando a gente devolve a esses homens o lugar que é deles por direito.

Exu e Ogum aparecem como forças decisivas na movimentação do enredo. Como você trabalhou para representar essas entidades com respeito, profundidade e longe dos estereótipos que a cultura popular ainda reproduz?

O trabalho não foi simples. Antes de qualquer coisa, eu precisei aprender sobre eles. Estudei suas histórias, suas personalidades, seus princípios. Meu cuidado sempre foi tratar Exu e Ogum com o máximo respeito, longe das distorções que a cultura popular insiste em repetir.

Quanto à profundidade, enxerguei Exu como um general. No livro, ele traça um plano para libertar o seu povo do sofrimento, o que, para mim, é uma ação nobre. Seu outro objetivo era tirar Ogum do exílio, e para isso ele precisava de uma guerra. É essa movimentação que provoca o conflito, traz Ogum de volta e, anos depois, abre caminho para a abolição da escravatura.

Minha intenção foi mostrar esses orixás como forças complexas, inteligentes e decisivas, e não como caricaturas. Eles têm ética, têm propósito. Trabalhar isso com cuidado foi essencial para que o livro honrasse a espiritualidade e a ancestralidade que o inspiram.

Zabelê e Justina representam a fortaleza das mulheres negras durante a guerra e a ausência. Por que era importante para você que o feminino tivesse um papel de sustentação tão marcante na trama?

É importante pois quando os homens saem para a guerra, as mulheres ficam e vida segue. Elas se apoiaram nelas mesmas, as viúvas de marido vivo. Era importante porque, para mim, a história da guerra. Foram elas que seguraram a casa, a família, a fé, a memória e, muitas vezes, o próprio sentido de continuar vivo enquanto os homens estavam na linha de frente ou desapareciam no desconhecido.

Com Zabelê e Justina, eu queria mostrar isso de forma direta. São mulheres que protegem, que curam, que orientam, que mantêm o chão firme quando tudo em volta desmorona.

Seu livro coloca Fernão como narrador e protagonista, não como uma figura observada de fora pela história oficial. O que muda — literariamente e simbolicamente — quando uma narrativa negra é contada por quem vive as dores e as glórias?

O livro é narrado em terceira pessoa, então Fernão não conta a história diretamente. Mesmo assim, a escolha de acompanhar sua trajetória de perto produz um efeito importante.

Tecnicamente, a terceira pessoa me dá liberdade para construir o mundo, costurar as tramas paralelas, incluir elementos históricos e míticos e transitar entre diferentes espaços da narrativa. Mas ao mesmo tempo, optei por uma terceira pessoa que se aproxima do protagonista, que respeita seu ponto de vista e acompanha sua interioridade sem falar por ele. Isso cria uma perspectiva que, embora não seja narrada por Fernão, mantém o foco na experiência dele.

Mesmo não sendo narrador, Fernão é o eixo. E isso já muda tudo: retira o protagonismo da leitura oficial e coloca a experiência negra como fundamento da narrativa, não como nota lateral. Isso, para mim, é tão importante quanto dar a ele a primeira pessoa. Também era importante para mim contar a história do ponto de vista de um soldado negro de baixa patente.

Você vem da ciência e da inovação em saúde, áreas muito racionais e técnicas. Em que medida sua formação influenciou sua escrita — seja na precisão, na construção dos detalhes ou na forma de enxergar o humano?

A minha experiência ajudou pouco nesse projeto, pois atuo em uma área altamente experimental. Nesse projeto, eu pude trazer a pesquisa de referências históricas e bibliográfica, a descrição de cenários,  a disciplina de trabalho. Eu, por muitos anos, fui profissional de enfermagem. Esse trabalho sim, me deu elementos humanos para a construção de personagens e algumas descrições de eventos que estão no livro, como a cena da primeira transfusão de sangue em humanos da história.

A obra fala sobre guerra, mas também sobre dignidade, legado e cura ancestral. Que sensação você espera que o leitor leve consiga ao fechar o livro?

Essa é uma boa pergunta. Eu quando comecei a escrever eu não pensei nisso, não foi um projeto elaborado para enviar uma mensagem especifica. Esse livro é a minha primeira experiência. Foi um texto quase que psicografado, mas eu espero que o leitor sinta que houve outros heróis na Guerra do Paraguai, que o leitor sinta um respeito maior pela ancestralidade, com um entendimento mais profundo da força que nos trouxe até aqui e com a certeza de que dignidade e legado.

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