Antonio Carlos Brandão retrata utopia brasileira inspirada na revolução francesa através de novo livro

Luca Moreira
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Antonio Carlos Brandão
Antonio Carlos Brandão

Em Verde, amarelo e outras cores, Antonio Carlos Brandão resgata as memórias de Nova Ilusão, uma cidade utópica que tentou viver os ideais de igualdade, liberdade e fraternidade da Revolução Francesa no interior do Brasil. Por meio das reflexões do personagem Frei Barbudo, último sobrevivente do povoado, a obra mergulha nos impactos do colonialismo e na busca por um mundo mais justo e pacífico. Com influências do realismo fantástico e uma abordagem filosófica profunda, o livro explora dilemas humanos atemporais, unindo filosofia, ciência e religião em uma narrativa instigante.

Nova Ilusão foi um sonho que existiu por um tempo, mas acabou sucumbindo às forças externas. Você acredita que uma utopia como essa poderia realmente se sustentar no mundo de hoje? O que seria necessário para que ela sobrevivesse?

Não. Acredito que, para uma utopia com esse formato existir, precisaria de mudanças muito profundas nas sociedades. Começando pelos conceitos religiosos, políticos e sociais. Acredito que o mais difícil seriam os religiosos. Esses estão envolvidos de forma tão intensa na sociedade que seria impossível em qualquer das religiões Abraâmicas, como a judaica a cristã ou mulçumana, e mesmo nas demais.

Frei Barbudo é o último sobrevivente de um povoado que tentou viver de forma justa e igualitária. Qual foi a inspiração para criar esse personagem e como ele reflete as ideias centrais do livro?

Suas perguntas são formidáveis. Frei Barbudo existiu. Ele era frei, portanto, não ordenado, e apresentava uma grande barba negra. Tinha feito voto de castidade e pobreza. Minha avó italiana tinha costume de dar apelidos a todos, e começou a chamá-lo de Barbudo. Eu fiquei sabendo que ele tinha escolhido o nome de Arcanjo. Ele era da Basílica menor de Aparecida aqui em Rio Preto e responsável pela conservação da igreja. Também era quem fazia as hóstias. Essas, antes de serem consagradas, podiam ser comidas, e eu e meu irmão, com 8 e 4 anos, íamos à igreja com minha avó, pois morávamos próximo, e meu irmão pedia ao frei “batatinhas”, que eram as hóstias. Por isso gostávamos muito dele, de forma que pensei em fazer uma homenagem a ele. E o seu cachorro “filé” era um cachorro meu a quem eu tinha muita estima.

O livro une filosofia, ciência e religião em uma narrativa que questiona conceitos fundamentais da sociedade. Como foi o processo de pesquisa para equilibrar esses temas tão complexos dentro da trama?

Sim. Foram quatro anos de pesquisa sobre religião, filosofia, povos indígenas e africanos. O grande desafio foi como juntar tudo em forma de romance e não como pesquisa sobre textos já tão pesquisados. Essa pesquisa envolveu a leitura dos clássicos da filosofia, além de trabalhos de tese de universidades. Em relação à História, eu procurei, além de livros clássicos, historiadores de romance como Barbara Tuchman, Arnold Toynbee e vários outros que são chamados de filósofos da história A solução para tudo que pesquisei, depois de muita tentativa, foi o realismo fantástico e um local fechado para desenvolver o drama, no caso, Nova Ilusão. A ideia de colocar Bambolino, que era atemporal, foi a de explicar alguma coisa de religião, história e ciência, mas com maior foco nas complicadas relações humanas.

O realismo fantástico é um recurso poderoso para explorar questões sociais e filosóficas. Como essa abordagem ajudou a construir a atmosfera de Verde, amarelo e outras cores?

Nesse estilo, eu consegui misturar os dois mundos que vivemos. Um mundo palpável, verificável, e outro imaginável, onde pensamos no futuro, na alma, no céu ou inferno e onde as religiões nos levam e sobrevivem. Parece que, no período paleolítico superior, foram encontrados sinais de rituais fúnebres. A partir daí, o homem começou a pensar no pós-morte. Apareceram os deuses e os gregos tentaram definir com conceitos de alma e espírito. Acredito que, no dia a dia, esses dois mundos são inseparáveis: o pensamento no futuro, no amor, na família e sempre na morte, este que acredito ser fundamental para os humanos. E o outro “lado da vida” é o que mantém as religiões, todas elas. As promessas do outro lado e um perdão de um Deus que os intermediários acreditam representar. Dessa forma, eu relato fenômenos que não seriam possíveis com outro estilo.

Antonio Carlos Brandão
Antonio Carlos Brandão

A chegada do circo representa uma virada na história de Nova Ilusão. O que esse evento simboliza dentro da narrativa e que tipo de reflexões você espera provocar no leitor?

A chegada do circo itinerante acaba com o isolamento. Então começa a aparecer o Brasil Oficial. O Brasil Real e o Brasil Oficial foram relatados em uma palestra de Ariano Suassuna, mas ele diz que foi Machado de Assis quem primeiro usou o termo. E atualmente esses termos começam a ser usados novamente, acredito que na maioria dos países. Sem o isolamento de culturas estrangeiras, das teorias religiosas e filosóficas, é mais fácil manter a utopia. Esse conceito pode ser visto em Voltaire, quando em Candido ele faz uma ironia com os conquistadores europeus.

A cidade utópica acolheu figuras de diferentes origens e trajetórias. Como cada um dos personagens – Feliciano Firmino, Tião Ekundayo, Maria do Rosário e Frei Barbudo – contribui para a visão de mundo que o livro propõe?

A ideia é mostrar que diferentes raças e condições sociais podem conviver muito bem lado a lado, e, independente de sexo ou condição social, podemos encontrar indivíduos de grande sabedoria. Nesse ponto, eu defino no livro que inteligência é a capacidade de mudar a natureza, como extrair minerais e construir vários artefatos ou ainda cortar uma arvore e fabricar uma porta linda. Ou o pior; inventar a bomba atômica. E sabedoria é saber se isso é bom ou não.

A obra traz referências a grandes pensadores como Spinoza, Pitágoras, Voltaire e Sócrates. Como esses filósofos dialogam com a realidade de Nova Ilusão e com as questões contemporâneas?

Só Spinoza consegue dialogar com os conceitos de vida de Nova Ilusão. Os demais são citados para mostrar que, para a nossa gente do Brasil Real e com uma natureza humana que temos, pouco importa as divagações filosóficas. Talvez Voltaire também consiga, porque era irônico acerca dos conquistadores. Em relação à questão contemporânea, fica a percepção de que nada mudou desde os grandes pensadores gregos.

O livro questiona a forma como a sociedade lida com conceitos como poder, progresso e desenvolvimento. Na sua visão, o que podemos aprender com Nova Ilusão sobre esses temas?

A ideia é que devemos parar de inventar o que eu chamo de ciência inútil, como, por exemplo, a IA, ou gastar fortunas para ir buscar pedras na lua. Sempre que o homem inventa alguma coisa de viagem estelar aparece ao pensamento: vamos descobrir como se formou o universo. Para quê? Temos que primeiro cuidar da nossa casa. No entanto, eu, que já fiz pesquisa, sempre encontrava essa resposta: Nós não podemos parar a ciência. Concordo, mas qual ciência?

A conexão com a natureza é um aspecto central na filosofia do livro. Você acredita que recuperar essa relação poderia ser a chave para resolver alguns dos dilemas modernos?

Sem dúvida, existe uma lenda Xerente que diz: “O deus Sol, “Waptokwá”, que eles chamam de “Waptokwa Zawre” (nosso grande pai), é o pai de todos os indígenas. No começo, quando Bdâ e Wairê Sol e Lua) estavam juntos olhando a criação, Bdâ, pegando um pequeno talo de buriti, jogou-o na água. O talo de buriti submergiu e imediatamente voltou à tona. Aí Bdâ disse: “Nossos filhos vão morrer e logo tornar a viver”. Wairê não concordou, pois assim iriam aumentar muito sobre a Terra, e não existiria caça suficiente para todos, e eles iriam comer uns aos outros. Então, pegando uma pedra, jogou-a na água. A pedra afundou e nunca mais voltou à tona. Os xerentes dizem que, se não fosse assim, hoje eles não estariam chorando a morte dos entes passados. Para eles, xerentes, “tudo tem vida”. O homem, os animais, as pedras, as árvores, as águas e toda a natureza se comunicam. Eu coloquei no meu livro: vamos conviver com a natureza e não a destruir.

Apesar do fim de Nova Ilusão, sua memória ainda ressoa no livro e na voz de Frei Barbudo. No mundo real, quais são os sinais de que ainda existe espaço para a construção de novas utopias?

A grande esperança são os jovens. A minha geração estragou tudo. No entanto, precisamos ensinar a eles o que é sabedoria e a diferença com inteligência e não entusiasmo por tecnologia ou a pretensão de ir para outro planeta. Uma parábola popular, que não sei a origem, conta uma história. “Um grupo de indígenas teve sua região queimada pelo fogo. Então, quando saíram para caçar, encontraram só animais assados, mas comeram assim mesmo e gostaram. Por isso, de tempos em tempos, eles colocavam fogo na mata e depois iam pegar os animais já assados. Até que um mais inteligente pegou madeira e pôs um animal para assar e explicou. — Estão vendo, não precisa pôr fogo na mata— Ao que o cacique respondeu: mas o que vou fazer com quem põe fogo, com quem apaga o fogo, com quem vai buscar os animais e com quem planta as arvores?”. Então o que faríamos com tanta gente que vive da inteligência que não é sabedoria?

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