A alma do traço: Rodger Liukane e a resistência poética da animação 2D no mundo digital

Luca Moreira
10 Min Read
Rodger Liukane
Rodger Liukane

Em um cenário global cada vez mais dominado pelas produções em 3D, o animador e diretor de arte Rodger Liukane mantém viva a tradição do 2D com uma abordagem sensível, artesanal e cheia de identidade.

Nascido e criado na França e à frente do AwAzing Studio, fundado ao lado da ilustradora Virginie Diaz, ele atua em todas as etapas do processo criativo — do concept art à composição — defendendo que o traço manual ainda carrega uma força expressiva que o digital não substitui. Para ele, “a animação 2D tem alma, tem imperfeições, e é justamente isso que nos conecta de forma mais humana”. Unindo referências que vão de Glen Keane a Craig McCracken, Rodger cria narrativas visuais que atravessam fronteiras e reafirmam a potência cultural de uma linguagem que resiste ao tempo.

Você construiu uma carreira que abrange diferentes áreas do audiovisual — desde concept art até direção de arte em animações detalhadas e emocionalmente ressonantes. Como foi para você perceber que queria deixar a indústria dos games e mergulhar de vez em projetos mais pessoais, com total liberdade criativa?

A principal razão para eu deixar a indústria dos videogames foi, simplesmente… minhas paixões de infância. Tenho três grandes paixões na vida: Desenho/Animação, Videogames e Dança (sim, você leu certo, dança). Quando cheguei aos 30 anos, percebi que já tinha trabalhado profissionalmente em duas dessas áreas: videogames e dança, já que minha posição anterior unia as duas. Para completar meu objetivo de vida profissional, só faltava uma: Desenho e Animação! Para evitar qualquer arrependimento na velhice, decidi sair da empresa e me tornar animador 2D freelancer! Nunca é tarde para realizar seus sonhos!

A empresa de games onde eu trabalhava era enorme (mais de 15.000 funcionários no mundo todo), então meu trabalho e decisões faziam parte de uma engrenagem gigante. Era como estar em um formigueiro! Trabalhando em menor escala, tenho a vantagem de experimentar várias funções, desde concept art até direção de arte/animação, além de ter contato direto com os clientes e testar diferentes métodos de trabalho. Cada dia é diferente — o que é uma grande fonte de motivação e descoberta.

Fundar o AwAzing Studio com Virginie Diaz parece ter sido mais do que uma decisão profissional — também foi algo emocional e artístico. Como é o processo de co-criar com alguém tão próximo emocionalmente? Já se surpreenderam com o quanto as visões individuais de vocês se complementam?

Misturar projetos pessoais e profissionais com sua parceira de vida não é fácil para todo mundo. Acho que os pontos mais importantes são: escutar e manter a mente aberta com o parceiro. Nós dois já trabalhamos juntos na mesma empresa, e mais especificamente, na mesma equipe. Então foi muito mais fácil estabelecer um ambiente seguro para trabalhar e fundar nosso estúdio criativo — ainda mais sendo ambos artistas.

Para ser honesto, não nos surpreendemos com nossa sinergia, porque somos muito “fusionais”, tanto nas tarefas do dia a dia quanto nos projetos profissionais! Um constantemente impulsiona o outro a evoluir, e cada dia é um novo passo para nos entendermos melhor.

Seu estilo artístico evoca uma sensação nostálgica e ao mesmo tempo contemporânea, lembrando séries como Steven Universe e Hazbin Hotel. Como você enxerga sua identidade visual hoje? Ela surgiu de forma intuitiva ou se desenvolveu com o tempo, por meio de referências e crescimento pessoal?

Sou um cara dos anos 90, então minhas principais inspirações foram todos aqueles desenhos antigos, longas de animação como os clássicos da Disney dos anos 90, personagens da Warner Bros (Pernalonga, Animaniacs, Papa-Léguas…) e animes japoneses (Pokémon, Dragon Ball, Evangelion…). Além disso, nasci e moro na França, que tem uma identidade forte e única com os quadrinhos franco-belgas. Se eu tivesse que me descrever hoje, diria que sou uma mistura perfeita dessas três identidades visuais: desenhos americanos, quadrinhos franceses e anime japonês.

Quando era mais jovem, desenhava principalmente no estilo mangá, e até hoje esse traço ainda está presente nos meus desenhos. Como curiosidade: sempre tem aquele “nerd do mangá” na escola, né? Eu era esse cara!

Mas à medida que crescemos, nossas influências e referências evoluem — e isso impacta meu trabalho e, de forma geral, minha visão de mundo. Mesmo em pequena escala, tudo com o que interajo — videogames, filmes, música, até uma simples caminhada — pode influenciar positivamente meu trabalho!

Rodger Liukane
Rodger Liukane

Você costuma compartilhar releituras incríveis de personagens clássicos da Disney, o que revela uma paixão genuína pela animação 2D tradicional. Como você enxerga o domínio quase total da animação 3D no cinema comercial, e por que acha que vemos tão poucos projetos em 2D hoje em dia?

É verdade que a animação 2D parece ter desaparecido, e muita gente acredita que ela esteja morrendo e sendo substituída pela 3D — o que eu não concordo totalmente! Acredito de verdade que as duas são necessárias. Todos os melhores filmes 3D são baseados em princípios e conhecimentos do 2D. A forma pode mudar, mas a essência é a mesma!

Você sabia que o famoso filme da Disney, Enrolados, foi desenvolvido com base na animação 2D para criar personagens super expressivos e dinâmicos? O lendário animador tradicional Glen Keane (A Bela e a Fera, Aladdin, Tarzan) desenhou as poses mais memoráveis da Rapunzel!

Hoje, a animação 2D não desapareceu — ela apenas migrou para outras áreas: séries de TV, videogames, curtas independentes, clipes musicais… Vou ser direto: acho que projetos 2D sofrem com a mentalidade de certos investidores de fora da área que querem “algo barato e rápido para ter muito lucro”. Isso gera projetos menos interessantes (artisticamente falando), artistas desmotivados, e por aí vai.

Mesmo assim, sigo muito positivo ao ver cada vez mais artistas independentes, projetos autorais e estúdios criativos surgindo para romper essa lógica de mercado!

Além do estilo visual, seus projetos mostram um cuidado claro com a narrativa. Eles não querem apenas ser bonitos — querem dizer algo que ressoe. Que histórias ou temas você sente que ainda precisa explorar como artista? Existe alguma ideia que te acompanha em silêncio, esperando a hora certa?

Uma regra de ouro na animação é: “A gente não anima só por animar, estamos comunicando uma ideia.” O melhor desenho do mundo não funciona se não tiver uma boa história por trás. Tento, sempre que posso, transmitir meu ponto de vista para o público — encontrar o equivalente gráfico de uma emoção, de como eu a sinto.

Se tiver um tema específico que quero explorar mais, seria: “Seja você mesmo na arte.” A sociedade vive ditando o que devemos fazer o tempo todo, então… fuja do convencional! Se você quiser desenhar um gato com chifre de unicórnio, pernas de sapo e que solta laser arco-íris pelos olhos — vá em frente! Não importa o que digam, o importante é se divertir com seu trabalho e acreditar nele!

Tenho ótimas ideias para o futuro, mas vou guardar para mim por enquanto! E não, infelizmente, não envolvem um gato gigante com pernas de sapo soltando lasers (por enquanto…).

Você costuma mencionar sua paixão por besouros, dinossauros e elementos da cultura japonesa — todos ricos em detalhes e simbolismo. Como essas paixões influenciam o seu trabalho? Você sente que elas ajudam a construir mundos mais complexos ou funcionam mais como portais para a sua imaginação?

Sou verdadeiramente apaixonado pela cultura japonesa desde criança. E não só pelos animes — mas pela cultura como um todo: culinária, tradições, música, videogames… Sinto que tudo isso influencia muito meu trabalho e até meu estilo de vida. O folclore japonês, como os yokais (espíritos e fantasmas), muitas vezes alimenta minha criatividade e imaginação.

Quando estou sem inspiração, simplesmente respiro fundo e mergulho em livros, séries ou músicas — isso sempre me ajuda a voltar para o lápis com outra energia.

Besouros e dinossauros são mais como hobbies que quero manter pessoais. Acho que é saudável ter algumas paixões que não se misturam com o trabalho profissional — senão a mente nunca para de pensar em projetos e trabalhar! Mas quem sabe um dia eu não crio algo envolvendo esses dois temas?

Acompanhe Rodger Liukane: Website | Instagram | AwAzing Studio

TAGGED:
Share this Article

Você não pode copiar conteúdo desta página