Quem é La Casa de Papel na frente de Cangaço Novo?

Thainá Duarte, Alice Carvalho e Allan Souza Lima interpretam os irmãos Vaqueiro (Foto: Reprodução/ Amazon Prime Video)

Nordeste. Cangaço. Ação. Produção audiovisual brasileira. Audiovisual no Nordeste. Quando mencionadas, essas frases evocam imagens quase que instantâneas no nosso imaginário. Nem sempre positivas e, na maioria das vezes, estereotipadas.

Cangaço Novo, a nova produção da Amazon Prime Video, não só mostra possível a existência de um projeto audiovisual nordestino bem produzido – do gênero ação, não comédia, diga-se de passagem –, como traz à tona a pergunta que não quer calar: na fila do pão, o que é La Casa de Papel perto de Cangaço Novo?

Além de subverter a lógica centrada no eixo Rio-São Paulo, onde se concentram as oportunidades e o “desenvolvimento”, sobretudo no que diz respeito à produção de filmes e séries brasileiras, Cangaço Novo retoma a estética e a temática do cangaço, que parecia já ter sido explorada à exaustão, sob uma ótica contemporânea que não se deixa, para o bem e para o mal, esquecer o passado.

Com uma fotografia cinematográfica, um elenco afiado e uma trilha sonora de peso, a série dirigida por Aly Muritiba e Fábio Mendonça tomou o primeiro lugar no Top 10 das produções da Amazon Prime Video e tornou-se um hit global, segundo diversos portais de notícia, com destaque para 24 países africanos, entre eles Moçambique e Angola.

A trilha musical de Cangaço Novo vai de ‘Da Lama ao Caos’, de Chico Science, e ‘Carcará’, na voz de Maria Bethânia, à versão de Alice Carvalho de ‘Espumas ao Vento’. (Reprodução: Spotify)

O roteiro da série certamente tem parte na razão de tamanho sucesso. Cangaço Novo acompanha a vida de Ubaldo, um homem jovem que descobre uma herança no Ceará e se torna uma espécie de retirante às avessas. Ele sai de São Paulo na esperança de conseguir salvar o pai, internado em estado grave de saúde, com o dinheiro das terras sertanejas que por direito lhe pertencem.

A história do Cangaço Novo

Chegando ao interior cearense, na cidade fictícia de Cratará, Ubaldo encontra duas irmãs com quem divide o direito às terras e cargas inesperadas de adrenalina. A recepção nada calorosa de Dinorah Vaqueiro, a irmã do meio, faz cair por terra o plano com o qual o protagonista saiu de São Paulo determinado a seguir.

Ubaldo se confronta, então, com seu destino. Sua herança, na verdade, era o cangaço. Ainda que traído pela própria memória, a música de abertura do primeiro dos oito episódios da série já anuncia a sina do protagonista: “Oh vaqueiro do meu sertão, não despreza o teu gibão. Nosso destino é marcado pela providência divina”.

Escorraçado das terras da família, para tristeza de Dilvânia Vaqueiro, a caçula, Ubaldo aguardava o ônibus que o levaria embora junto das esperanças de salvar o pai. No processo, acabou por parar no lugar exato (um banco), na hora exata (a de um assalto).

Protegido por Jeremias, personagem carismático de Ênio Cavalcante e um dos assaltantes, que há pouco o havia conhecido e já depositava fé no Vaqueiro, Ubaldo se junta ao bando por falta de opção. Quando a irmã percebe, em plena fuga, a presença do intruso em um dos carros, ela o ameaça e, então, ele usa seu trunfo: o conhecimento de ex-bancário.

Prometendo um assalto promissor, Ubaldo ganha tempo de vida e a esperança de salvar o pai de volta, embora as questões familiares ainda permaneçam em aberto. Uma vez que ele e Dinorah conseguem as informações necessárias para o assalto ao banco, Ubaldo se torna irrelevante e Dinorah tenta matá-lo, mas o tiro sai pela culatra.

Quando vai tratar do ferimento, que toma a forma de uma porta em seu braço, Ubaldo encontra outra saída. O irmão mais velho de Dinorah ressurge no ponto de encontro do bando com um plano de assalto mais ambicioso, retomando seu valor para o grupo.

Diante da realidade cruel da seca no sertão, o protagonista se depara também com as expectativas do povo devoto e necessitado de Cratará, afinal, Ubaldo foi feito à imagem e semelhança de Amaro Vaqueiro – seu pai biológico e falecido líder do cangaço. Bandido para alguns, herói para tantos outros.

O maniqueísmo da figura é intrínseco ao cangaço. Amaro fazia política com o banditismo rural. O dinheiro dos assaltos servia à população da cidade, inclusive por meio da política institucional. Em uma das cenas de flashback em preto e branco que abrem os episódios, Amaro reúne o dinheiro do cangaço e entrega a Osório Leite, concorrente de Deocleciano Maleiro à prefeitura de Cratará.

A falta de água na cidade é um dos indícios de que Cratará segue sob o comando da família Maleiro. Assim como o cangaço é hereditário, o poder político de Deocleciano passara a seu filho, Gastão Maleiro. No modus operandi do nepotismo à brasileira, a família se move pela disputa daquilo que é pivô de guerras ao redor do mundo desde a criação deste negócio falido chamado civilização: terras.

No espírito espiralar da narrativa, os Maleiros também disputam uma eleição contra Paulino Leite, esposo de Leineanne, a filha de Osório e amiga de infância de Ubaldo. Cangaço Novo, então, se lança sobre um gênero com certo apelo de público sob uma ótica profundamente brasileira, não só por resgatar o cangaço e retratar o sertão, mas porque joga luz na politicagem de município que se opera até hoje no Brasil.

Cultura também é política

Cangaço Novo acerta em cheio ao lançar o olhar para um Brasil marginalizado e contemporâneo, mostrando-se em dia com as pautas sociais efervescentes, enquanto se utiliza de um gênero que impele o espectador a passar para o próximo episódio. Bem mais do que assaltantes de banco por ambição e aventura, Cangaço Novo ostenta uma perspectiva histórica e faz uma leitura social e política desse país continental.

Além de retomar o cangaço, a obra renova o banditismo rural colocando-o como forma e opção de revolução de hoje, sem deixar de questioná-lo. Com a forte presença feminina de Dinorah, emprestada do talento monumental de Alice Carvalho e da mente de Mariana Bardan, uma das criadoras da série, Cangaço Novo de fato “empieza el matriarcado” e o sustenta, sobretudo pelo matriarcado da família construído por sua tia Zeza, que criou ela e a irmã Dilvânia.

É Dinorah quem tem honrado o legado do pai, mesmo tendo sido desencorajada de seguir seus passos na infância, sob o argumento de que “arma não é brinquedo de menina”. A rixa com o irmão recém-chegado, que acreditava estar morto, talvez nasça de uma questão de gênero. Dinorah vê ameaçada sua posição no bando com a chegada do irmão, firmada a despeito da misoginia de certos integrantes do grupo, à força bruta.

Dinorah evoca seus ancestrais e recebe a bênção de Maria Bonita no último episódio de ‘Cangaço Novo’ (Foto: Reprodução/ Amazon Prime Video)

Ainda que a Dinorah Vaqueiro de Alice Carvalho roube a cena, Leineanne e, sobretudo, Dilvânia e Zeza formam a haste de sustentação da luta enfrentada pelo povo de Cratará. Juntas, elas reescrevem o papel da mulher neste novo cangaço e conseguem unir os dois caminhos apontados pelo cinema de Glauber Rocha – o cangaço e a luta popular e camponesa pelas terras, cerne da questão da desigualdade social brasileira.

Fugindo, assim, das referências europeias anteriormente trazidas, Zeza Vaqueiro funda a Irmandade das Três, entidade cujo nome possivelmente faz referência à outra série brasileira também produzida pela O2 Filmes. De cunho igualmente social e político, retratando o crime enquanto ferramenta de reparação e subversão da realidade, “Irmandade” também divide duas figuras do elenco com Cangaço Novo, Hermila Guedes, a Leineanne, e Pedro Wagner, que dá vida ao cangaceiro conhecido como Moeda.

Tal qual em Bacurau (2019) – a falta de água não é a única semelhança entre as obras –, a cidade de Cratará também é quase que uma personagem. Assim como o filme de Kleber Mendonça Filho, Cangaço Novo se vale de cenas gráficas de violência e da mobilização popular em defesa de uma cidade nordestina. Entretanto, ao invés da empreitada contra gringos, a obra se contenta a dar espaço ao conflito entre os Brasis.

Ubaldo abraça suas raízes de cangaceiro quando chega a Cratará (Foto: Reprodução/ Amazon Prime Video)

Antagonizando visões de mundo até mesmo dentro do próprio bando, Cangaço Novo traz na personagem de Allan Souza Lima, Ubaldo Vaqueiro, uma forma de organização mais estratégica e menos violenta (que não se sabe até quando se sustentará), engajada com uma perspectiva de justiça social aos moldes de Robin Hood. Afinal, como diz Zeza, não se ganha o jogo obedecendo às regras.

O elenco majoritariamente formado por atores nordestinos em uma produção que se volta ao Nordeste, por mais óbvia que seja a conformação, parece ter chamado bastante atenção do público e da crítica. A admiração, sem dúvida, vem de anos e anos do Nordeste sendo retratado e interpretado por olhares sudestinos no audiovisual.

O frescor trazido por Allan Souza Lima não se deve somente ao fato do movimento de êxodo urbano exercido por seu personagem, mas à sensação de que o jogo virou. Afinal, trata-se de um paulista sendo interpretado por um recifense. “É aqui que a gente vai viver, sobreviver era lá [em São Paulo]”, diz Ubaldo em resposta ao seu pai adotivo, quando este chega ao Ceará a contragosto.

A cena que sublinha a fala de Ubaldo mostra carroças transportando famílias de Cratará, por terem perdido suas casas em um leilão, em retirada às terras da família Vaqueiro – a solução está ali mesmo, no próprio sertão nordestino. A família cangaceira não recebe o povo por caridade, vale lembrar, mas, sim, porque, como bem traz o título do episódio 6, tudo é política. E é precisamente o que o cangaço, sem muita diplomacia, fazia nos séculos XIX e XX.

Cangaço Novo, da mesma forma, não aborda o tema displicentemente. Ao contrário, traz sua forte crítica social ao colocar o Brasil em um microscópio. Além das injustiças sociais apontadas na série e dos posicionamentos tomados a partir da escolha de tema, locações e elenco nordestinos, a obra coloca em evidência o passado político nada distante do país pela figura de Gastão, que faz comício com arma na mão e recebe apoio de seus fiéis com motociata, enquanto a população sofre com a vida precária. 

A criação de Mariana Bardan e Eduardo Melo desponta como um feito no audiovisual brasileiro, notável pelas proporções inéditas tomadas pela obra em tempos de streaming e, acima de tudo, pela qualidade com a qual Cangaço Novo se apresenta visual e textualmente.

Do conteúdo à estética, Cangaço Novo faz um retrato do Brasil e demonstra a força da retomada da cultura no país após um longo período de desmonte. Não obstante, Cangaço Novo é uma declaração convicta de que essa retomada não vem de qualquer Brasil.

Share this Article