Muito antes de Freud formular os conceitos da psicanálise, Machado de Assis já explorava as profundezas da mente humana e as contradições da alma com ironia e genialidade literária. Essa é a tese apresentada pelo pesquisador Adelmo Marcos Rossi no livro O Imortal Machado de Assis – Autor de Si Mesmo, em que revela o autor de Dom Casmurro como precursor da psicanálise, décadas antes das teorias freudianas.
A obra, que sucede A Cruel Filosofia do Narcisismo (2021), traz uma análise detalhada das relações entre a literatura machadiana e os fundamentos da psicologia moderna. Com mais de 450 páginas, Rossi compara conceitos presentes na escrita de Machado, como o narcisismo, o recalque e o inconsciente, a termos consagrados por Freud. O resultado é uma leitura instigante que une filosofia, literatura e psicologia — revelando que o “Bruxo do Cosme Velho” talvez tenha compreendido a alma humana muito antes da ciência nomeá-la.
A sua pesquisa revela Machado de Assis como um precursor da psicanálise, antes mesmo de Freud. Quando você percebeu pela primeira vez essa conexão entre o olhar literário de Machado e o olhar clínico da psique?
Essa suspeita já ronda há bastante tempo através da questão se Freud leu Machado ou vice-versa. Na verdade, é Machado quem afirma, em carta a Quintino de 1862, quando ele tinha 23 anos de idade e Freud 6 anos em Viena, que
“O Imortal Machado de Assis – Autor de Si Mesmo” é resultado de quase 15 anos de estudo sobre psicanálise. Como foi esse processo de mergulhar tão fundo em duas mentes tão complexas — a de Machado e a de Freud — e fazer com que elas conversassem?
Acontece que existe uma certa arrogância no meio psicanalítico, do qual fiz parte, inclusive, ministrando curso de psicanálise, e saí dessa arrogância da ideologia, arrogância no sentido de superioridade, uma certa autoridade, basta ver os comentários em vídeo e nos próprios livros em que analisam tudo. Até filmes! Obras literárias! Machado de Assis mostrou a psicologia em ato literário nas descrições que fazia nas relações amorosas e relações de interesse e sem fazer nenhum julgamento.
Você afirma que Machado antecipou conceitos como o narcisismo e a cura pela fala. Acredita que ele tinha consciência filosófica do que estava propondo ou era uma intuição artística genial?
Em geral não se tem “consciência filosófica” do próprio Narcisismo, e nem Freud tinha essa consciência de que a psicanálise envolvia o Narcisismo da sua pessoa buscando reconhecimento social. Foi mais fácil para Machado tê-la por ele ter, desde jovem, optado por se escritor literário vendo o Narcisismo como desejo de sucesso e posteridade. Esse desejo Freud escondeu em carta a Fliess de 1900 dizendo que desejava uma placa de mármore no túmulo dizendo ter sido o homem que desvendou o enigma dos sonhos. Não lhe cabia bem, como cientista, que a teoria fosse vista como promoção pessoal.

O título do livro, “Autor de Si Mesmo”, sugere que Machado construiu sua identidade a partir da própria escrita. De que forma essa ideia se relaciona com o conceito moderno de autoconhecimento e com a psicanálise?
Um simples lavrador é também autor de si mesmo na medida em que assume a condução de sua própria vida. Meu pai, com seus 8 filhos, foi um homem assim, disse-me, quando eu contava 15 anos de idade, ‘se eu narrasse a minha vida daria um romance’, pelo fato de ter sido analfabeto e com um pequeno comércio teve 6 filhos formados na UFES e outros 2 ficaram no ensino médio. É o homem quem constrói a sua identidade e é responsável por ela. O que Machado ensina é como fazer isso na função de escritor: a obra é uma autoafirmação da identidade, da imagem, que fica para a posteridade. O homem comum também deixa lembranças, mesmo sem escrevê-las.
Machado de Assis foi um homem negro, autodidata e crítico de seu tempo. De que forma essas vivências pessoais influenciam o olhar psicológico e social presente na sua obra?
Na pesquisa que realizei não encontrei esse romantismo que tanto se comenta. A pesquisadora Marta de Sena quebra três pontos nos quais se sustentam alguns comentadores: (1) Machado era de uma elite intelectual, seus pais faziam parte dos 15% de alfabetizados. Ou seja, 85% não sabiam ler. (2) O Morro do Livramento era um bairro nobre na época – Machado nunca morou em favela. (3) Quando perdeu a mãe, com 10 anos de idade, e, comumente, vai ser vendedor ambulante, engraxate, vendedor de feira, Machado menino preferiu ingressar na Sociedade de Paula Brito que fazia a Imprensa Imperial e toda a imprensa culta da época. Ou seja, curioso como ele só, Machado podia ler tudo o que iria ser impresso!
Ao longo da pesquisa, houve algum texto machadiano que te surpreendeu pela profundidade psicológica ou pela semelhança direta com conceitos freudianos?
Difícil escolher UM texto. Existe um que surpreende bastante, e que Machado nem recolheu em livro de contos. É o conto Viagem à roda de mim mesmo (1885). Nem Freud teve a ideia de apresentar o momento inaugural em que, na linguagem, a criança passa do sentido natural ao sentido figurado. Quem recolheu esse conto foi Mario de Alencar para o livro Outras Relíquias (1910).
Como Machado deixou escondido um livro conceitual de psicologia, que ele mesmo não poderia publicar, pois, de certo modo, daria o segredo de sua produção, suspeito, de minha parte, que não publicou em livro a novela Casa velha justamente porque, nessa obra, é como se o Freud fosse morar dentro da família da paciente para ver no local as mazelas psicológicas que tratava e veria que não eram muito diferente de sua própria família. Em Casa velha, o reverendo cumpre essa função.
O livro dialoga entre filosofia, psicologia e literatura. Qual foi o maior desafio de unir esses campos sem perder o encanto da escrita machadiana nem a precisão científica da psicanálise?
Machado, mais que psicólogo e escritor de literatura, é também considerado filósofo. Quer dizer, ele mesmo uniu esses três campos em sua extensa produção. E o maior desafio fica para o lado do leitor, em acompanhá-lo.
Depois de apontar Machado de Assis como um precursor da psicanálise, qual seria, na sua opinião, o próximo passo dessa descoberta? Que novas discussões ou desdobramentos você espera inspirar com essa obra?
Esse livro é uma primeira tentativa de retomar Machado de Assis a partir de um ponto de vista que ele mesmo expressou em carta a Quintino de 1862, quando contava 23 anos de idade. Sendo uma primeira versão, segue com todos os erros e defeitos inerentes a uma primeira tentativa. Os pesquisadores se encarregarão de, a partir desse esboço inicial, melhorá-lo, adequando-o à linguagem apropriada tanto no território da literatura, da psicologia, do direito, da psicanálise, e das ciências humanas em geral, seja em linguagem acadêmica seja em linguagem de uso geral, como é a própria literatura de Machado.
Já passou da hora de Machado de Assis ser reconhecido, como afirma o pesquisador inglês John Gledson, pesquisador e divulgador da obra de Machado, passou da hora de nosso autor ser reconhecido como um pensador do nível de Shakespeare, Goethe, Dostoievski, e tantos outros. Segundo Gledson, se Machado fosse francês, inglês, russo, com certeza estaria na galeria dos grandes pensadores da humanidade. Está em fase de conclusão a tradução do livro para o inglês e o francês. As pesquisas continuam.
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