A cantora e compositora afro-brasileira Da Cruz, radicada em Berna, na Suíça, acaba de lançar o single “Uma Hora Mais”, faixa que integra o futuro álbum Som Sistema, previsto para janeiro de 2026. Conhecida por unir raízes brasileiras à música negra moderna, a artista apresenta uma canção de atmosfera sombria, marcada por batidas intensas, elementos de trap e um contraste inesperado com violoncelo melancólico. O lançamento veio acompanhado de videoclipe no dia 29 de agosto, reforçando a versatilidade criativa de Da Cruz e sua busca por narrativas que dialogam com colonialismo, revoltas sociais, amor e resiliência.
“Uma Hora Mais” trata de decisões que podem mudar o curso da vida. Quais decisões pessoais ou profissionais marcaram sua carreira e, na sua opinião, o levaram aonde você está hoje?
Resposta: Houve alguns momentos que mudaram a minha vida. Um dos mais importantes foi a minha decisão de me mudar para Lisboa. Foi a minha grande curiosidade que me levou a isso. Em Lisboa, entrei em contato com a cultura altamente interessante da diáspora africana Angolana, Cabo verdiana, São Tomé e outras mais . Naquela época, o kuduro estava conquistando as boates e eu adorava a energia crua dessa música. Isso certamente me marcou.
Mais tarde, conheci em Lisboa o produtor Ane H. (ele era vocalista da banda industrial suíça Swamp Terrorists), com quem fundei a Da Cruz. Ele estava procurando um novo projeto musical. E, em algum momento, começamos a gravar músicas juntos. Mais tarde, veio também o amor, que continua até hoje.
Outra bifurcação marcante na minha vida foi a decisão de me mudar para a Suíça. Eu tinha muito respeito por isso, porque teria que recomeçar minha vida do zero: aprender um novo idioma, decifrar uma sociedade, conhecer um inverno rigoroso de -20 graus, me reorientar completamente ou seja nascer de novo. Mas até hoje não me arrependo de nenhuma das minhas decisões.
Cada um deles me fez crescer pessoalmente, mesmo que eu não queira romantizar nada disso.
A faixa combina batidas fortes com um violoncelo melancólico. Como você chegou a essa combinação sonora única e o que queria transmitir ao público com ela?
Gosto do recurso dramático de introduzir ênfases musicais com passagens calmas, quase hipnotizantes. E adoro o som do violoncelo. Curiosidade: para o videoclipe, instruímos nossos modelos de IA a tocar violoncelo na floresta. Foram necessárias cerca de 100 instruções até conseguirmos algumas sequências curtas. No mundo da inteligência artificial, o violoncelo não parece ser um instrumento muito popular.
Mas sim a celebrar nossas forças Ancestrais, desprendermos por algum momento nossos corpos e mentes em movimento curativo celebrativo.

Você mora em Berna, na Suíça, mas continua fortemente ligado ao Brasil. Como essa visão de fora influencia sua maneira de compor e abordar temas sociais e políticos brasileiros?
É como em todas as áreas da vida. Uma certa distância, uma altitude diferente, muda a visão do objeto. Você vê coisas que talvez permaneçam ocultas quando se está muito perto. Mas minha visão do Brasil não é de forma alguma sóbria, ela está ligada a muitas emoções, pois todos os meus irmãos e, até recentemente, minha mãe ainda moram no Brasil. Venho do interior de São Paulo, onde o investimento no sistema educacional era e ainda continua precarizado sabotando a educação para a manipulação das mentes. Ou seja, não dando condições para seus direitos básicos de saber , conhecer, de ter, de ser e escolher seus próprios destinos.
Desconstruir esse abismo cultural e desigual que vivemos dentro do Brasil.
À distância, talvez seja ainda mais frustrante ver como um País jovem e rico não consegue alcançar o equilíbrio social. Pelo contrário. Nos últimos anos, a sociedade brasileira foi dividida, deliberadamente. E há uma coisa que nunca vou entender: que um grupo político acredite que pode fortalecer um país dividindo a sociedade, em vez de uni-la.
Desde que moro na Suíça, também percebo certos erros no projeto de nossa democracia. Na Suíça, não há apenas um presidente, mas sete, representando quatro partidos diferentes. Portanto, não é como se o país pudesse mudar completamente a cada quatro anos.
Existe uma estabilidade baseada na arte do compromisso. Além disso, o povo tem a possibilidade de votar certas decisões ou corrigir decisões tomadas a qualquer momento.
O povo tem consciência que os políticos escolhidos são aqueles que estão lá para trabalharem para um bem comum da população. E não pela sua própria família , privilégios, igreja e assim vai…
Isso é chamado de democracia direta, com o povo como última instância política. Às vezes, eu gostaria que outros países também tivessem essa opção regulatória. Para o Brasil, mas especialmente para os EUA.
“Uma Hora Mais” é quase um manifesto sobre coragem e mudança. Na sua opinião, qual é o papel da música hoje em dia para estimular a ação e a reflexão?
Infelizmente, não há desenvolvimentos encorajadores em que a música tenha obtido sucesso na área política. Se Beyoncé, Madonna e Taylor Swift não conseguem impedir um Trump, então é preciso dizer que a música não tem o poder de fazer as pessoas refletirem. O problema é que desencorajaram as pessoas a serem mais curiosas ao despertar, refletirem mais, ouvir mais o outro , ler mais, o respeito. Essa cultura da ostentação e destruição do outro é inaceitável. Acho que perdem muito tempo com coisas que não enriquecem nosso saber. E o tempo é um presente precioso quando estamos presentes no Agora. Estamos aqui de passagem então façamos o melhor para o coletivo agora.
No entanto, acredito que a música é a forma de arte que mais nos emociona. Ela nos faz chorar, comemorar, dançar e rir. Então, por que ela não seria capaz de desviar pensamentos sombrios? Recuso-me terminantemente a perder completamente essa ilusão.

Essa faixa encerra um ciclo criativo e prepara o público para o novo álbum. Que tipo de narrativa ou mensagem o álbum como um todo pretende transmitir?
É um álbum muito pessoal. Para nós, afro-brasileiras, é quase impossível descobrir onde estão nossas raízes. Não sei em que país africano meus ancestrais foram trazidos para o navio negreiro. Neste álbum, tentei explorar minhas raízes por meio da música. O que me motiva? Onde me sinto em casa? Mas não o fiz focando-me nos estilos tradicionais da música africana, mas sim na música incrivelmente inspiradora dos tempos modernos. A música eletrônica mais emocionante já não é produzida nas metrópoles ocidentais. Ela surge no sul global. Ou na diáspora.
Você mencionou que gostaria de desenvolver a música negra moderna. O que mais te inspira e como você consegue harmonizar tradição e inovação em seu som?
Seria presunçoso dizer que gostaria de desenvolver a música negra. Prefiro dizer que gostaria de dar um toque pessoal à música negra. Porque, mesmo que me inspire em estilos como gqom, amapiano, afrobeat ou baile funk, tento formar a partir de todos esses elementos uma música autônoma, que esteja em harmonia com a minha personalidade. É sempre engraçado quando, para campanhas nas redes sociais ou ao apresentar uma proposta no Spotify, é preciso indicar quais artistas têm um som semelhante, qual público-alvo se deseja atingir. Fico sempre sem saber o que responder. Na verdade, não há muita coisa que soe como Da Cruz. Acredito e espero criar algo original, o que, infelizmente, é um pouco difícil de comercializar na era dos algoritmos. (risos)

O videoclipe foi lançado no mesmo dia que a música. Como você criou a estética visual para representar esse contraste entre urgência e introspecção?
Na verdade, não estava planejado produzir um videoclipe para essa música. Então, tivemos uma pequena pausa nos shows e decidimos espontaneamente passar duas semanas nas montanhas suíças. Em Bettmeralp. Um lugar absolutamente mágico a 2.000 metros acima do nível do mar. Um passeio pela floresta nos inspirou a filmar algumas cenas para ver se dava em alguma coisa. Então, com a ajuda de duas pessoas, entramos na floresta no meio da noite e filmamos o videoclipe. Delegamos o resto à IA. Gosto muito de trabalhar com esse novo meio. Porque essa tecnologia está em um estágio muito interessante. Ela ainda comete erros. Ela afirma conhecer o mundo, mas falha miseravelmente em certas tarefas que lhe são atribuídas. Esses erros me interessam. Em breve, eles serão eliminados. Mas gosto dessa alucinação surreal que a IA produz no segmento de vídeo. Como ela tenta reconhecer o mundo com base nos parâmetros mais óbvios. Sem inteligência, seguindo sua própria lógica. E, mesmo assim, com a nossa ajuda, ela consegue criar atmosferas opressivas e cativantes.
Se você pudesse resumir em uma frase o que espera do público para “Uma Hora Mais”, qual seria essa mensagem?
Talvez praticar um pouco de humildade em relação à vida. Perceber que privilégio é ter livre arbítrio. Sabendo que esse livre arbítrio encontra limites e resistência para muitas pessoas neste mundo. Mas sim. Temos a sorte de poder tomar decisões todos os dias no microcosmo de nossas vidas que podem direcionar nossa existência para uma direção completamente diferente. Em pequenas e grandes coisas. Esse é um enorme privilégio da nossa criação. Opa. Isso foi mais do que uma frase.
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