Em Filhas da Ira, a escritora Ronailde Braga Guerra entrelaça ficção histórica e reflexões contemporâneas para discutir o papel da mulher na fé cristã. A narrativa acompanha Maria Madalena, retratada na Judeia do século I como uma figura intensa e contestadora, e Lyana Ahcor, uma ateia convicta do presente que enfrenta dramas familiares e espirituais. Ao cruzar as trajetórias dessas personagens, a obra explora temas como culpa, religiosidade, orgulho e reconciliação, revelando a força feminina diante da dor e a busca por redenção.
Maria Madalena aparece em seu livro de forma intensa e até contestadora. O que a motivou a desconstruir a imagem tradicionalmente passiva dela e a transformá-la em uma mulher que confronta até mesmo Jesus?
Existe muita divergência quanto à identidade de Maria Madalena, que já foi descrita como prostituta, nobre e até pretendente de Jesus. Diante de tanta incerteza, cheguei a uma certeza: ela deveria ser uma mulher controversa e à frente de seu tempo para ter seu nome registrado na Bíblia e debatido até hoje. Some-se a isso o que Lucas 8:2 relata: dela saíram sete demônios.
Mas Lucas não descreve quando e como ela foi liberta e, nesta brecha, passei a explorar Maria Madalena sob uma nova ótica. Então, o que esperar de uma mulher controversa, à frente de seu tempo e sob influência de sete demônios? Desta soma, só podia sair alguém intensa, contestadora e que enfrenta até mesmo Jesus, tal qual fizeram outros endemoniados.
A obra cria um elo entre uma personagem bíblica e uma mulher contemporânea, Lyana. Como foi o processo de costurar essas duas temporalidades e ainda assim manter um fio de reflexão comum sobre fé e dor?
As circunstâncias que criam a dor não mudam o fato de que ela está ali, gerando seus efeitos. Deste modo, o processo de costurar dois tempos ficou mais simples do que o de construí-los.
Isto porque, a despeito do tempo em que se vive, no fim das contas estamos falando de pessoas, ali representadas pelos personagens. Tanto homens quanto mulheres vivem suas dores e lutam para curá-las ou escondê-las e pensar nas pessoas, independentemente do tempo em que estavam, foi o que me ajudou a manter este fio ao longo de toda a narrativa, ora com um pé no presente, ora no passado.
Lyana é presidente de uma organização ateísta, mas se vê rezando no auge do desespero. Essa cena nasceu de alguma experiência pessoal ou observação sua sobre os paradoxos da fé?
Nasceu da combinação de duas observações: uma mais profunda e a outra, nem tanto… A primeira se refere ao famoso provérbio no meio cristão que diz “Educa a criança no caminho em que deve andar; e até quando envelhecer não se desviará dele” (Provérbios 22:6). Embora antigo, ele é atual e bastante certeiro. Na infância, nosso sistema nervoso passa pela fase mais intensa da mielinização e isso vai definindo nossa personalidade. Ou seja, o que vivemos na infância fica registrado no sistema nervoso e se reflete como comportamento na idade adulta.
A segunda observação vem da piada “Quando a coisa aperta, até o ateu chama por Deus”. Então, no aperto, Lyana — uma ex-cristã — refez aquele caminho. E orou, como uma criança.
O título Filhas da Ira remete a Tiago 1:20. Em que momento esse versículo se revelou como a chave para sua narrativa?
Foi após o ponto final. Já estava nos últimos capítulos, mas ainda não tinha um título e essa interrogação começou a me incomodar a ponto de atrapalhar a escrita. Então, um dia, bem irritada, orei e disse a Deus que Ele escolheria o título. Depois de orar, a interrogação sumiu da minha mente, que ficou livre para escrever. Semanas depois, deparei-me com a expressão “filhos da ira” num livro cristão e tive um clique; era a resposta de Deus àquela interrogação.
Filhas da Ira já estava em revisão quando achei aquela expressão em Efésios 2:3. Depois, em um domingo, o pastor pediu que abrisse a Bíblia em um versículo. Sempre espio os versículos prévios para ver o contexto e, ao fazê-lo, li Tiago 1:20, o que deu todo o sentido a tudo.

O livro critica distorções do papel feminino nas interpretações religiosas da Bíblia. Como você acredita que sua obra pode contribuir para ampliar a discussão sobre a voz e a presença das mulheres na espiritualidade cristã?
O livro tem esta linha da crítica, mas é importante destacar que ela vem na voz de alguém ressentido com a igreja e que confunde religiosidade com fé. Ou seja, é alguém que enxerga só aquilo que justifica a postura combativa, a qual, ao longo da narrativa, vai sendo confrontada.
Por outro lado, tal postura “chacoalha” outras personagens que se sentem injustiçadas, mas se acomodam neste lugar de vítimas da ira dos homens (da humanidade), e não recorrem à justiça de Deus, como Raabe, Ester e outras. Então, se quer ter mais presença e voz, antes, tenha menos para ter mais da presença e da voz de Deus. Se Ele quiser dar-lhe mais voz, dará. E Ele dá, inclusive, o que dizer (ou escrever…), mas só para quem tem ouvidos para ouvir.
Sua trajetória vem da área da saúde e da atividade física, com prêmios acadêmicos relevantes. Como essa formação científica influencia sua forma de escrever ficção cristã?
A formação científico-acadêmica me ensinou a pesquisar e a ter noção de estrutura textual. Essa experiência foi fundamental para meu primeiro livro, Guardiã – Despertar, pois sem saber como escrever um livro, fui pesquisar. Mas essa influência acaba na construção da estrutura.
Quando vou escrever ficção cristã, ponho a cientista de lado, a princípio. Não que ficção não exija pesquisa; estudei muita História e outros assuntos para construir Filhas da Ira. Mas, ao escrever a narrativa, preciso de liberdade criativa, de me permitir testar e errar sem me preocupar com metodologias comprovadas, justificativa do trabalho, revisão dos pares etc. Depois que o lado criativo fez sua parte, a cientista volta revisando e complementando.
Você traz temas densos como rejeição, orgulho, fé e redenção, mas também um olhar de esperança. O que gostaria que o leitor sentisse ao fechar a última página do livro?
Que o poder de transformar em cicatrizes as feridas que a ira dos homens nos deixa está perto, a uma oração de distância, pois é onde se encontra a justiça de Deus para quem O busca.
Isto não quer dizer que a vida será um mar de rosas, mas ter esperança de que Deus está ali, olhando para você e torcendo para que peça ajuda, numa oração simples, como a de uma criança, é incrível!
Entre Maria Madalena e Lyana, duas mulheres marcadas por dor e busca de reconciliação, qual delas mais desafiou você como escritora — e por quê?
Lyana foi mais difícil, pois nunca fui ateia. Tive idas e vindas com Deus e a igreja (em especial ao ingressar na universidade, onde a Ciência é deus e ser cristã significa ser ignorante…), mas nunca deixei de crer em Sua existência, mesmo nos períodos mais difíceis. E justamente por saber que, apesar das dificuldades, Ele estava ao meu lado, superei muitos desses desafios.
Escrever sobre quem não crê me fez pesquisar a fundo o ateísmo. Aprendi muito e penso ter entendido o suficiente para construir Lyana. Mas, no fim, saí grata por ser crente, pois ao ler, ouvir e conviver com ateus e ex-cristãos (e ex-ateus), o que marca a fala dessas pessoas — muitas extremamente inteligentes — é a falta de esperança. Triste. Prefiro ser ignorante.
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