Em “Os Amores de Clara”, a escritora e pedagoga Simone O. Marques retrata uma parte da história brasileira, honrando as mulheres que lutaram por igualdade no século XX, e homenageando a memória de seus ancestrais imigrantes. Inspirada nas vivências de sua tia-bisavó, a autora lança luz sobre a dura realidade enfrentada pelos imigrantes portugueses e italianos que buscaram uma vida melhor no Brasil, mas se depararam com condições de trabalho precárias.
O enredo nos leva à jornada de Clara e sua família, vindos de Portugal para o interior de São Paulo com a promessa de oportunidades. No entanto, são subitamente confrontados com uma servidão por dívidas, colocando-os em um embate para saldar as obrigações impostas por um fazendeiro. Clara, a protagonista, enfrenta individualmente essa realidade opressora enquanto nutre o sonho de buscar educação, mesmo que seu papel social a destine apenas às tarefas domésticas.
A história desvela uma época marcada por desigualdades de gênero e desafios financeiros, elementos que, narrados a partir da maturidade da personagem, revelam as complexidades da infância e o contexto social daquele período até 1932, quando as mulheres conquistaram o direito ao voto no Brasil.
O que a motivou a escolher a história de Clara e a experiência dos imigrantes como o foco de “Os Amores de Clara”?
A história de Clara foi inspirada em histórias da minha família e nas experiências das mulheres, algumas delas muito próximas, como minhas avós. Muitos de meus ancestrais, paternos e maternos, foram imigrantes portugueses que chegaram ao Brasil entre o século XIX e início do século XX e, a maioria deles, para trabalhar em fazendas de café no interior de São Paulo. Todas essas histórias me motivaram a contar a história de Clara e montar uma colcha de retalhos com elas, criando uma nova história, mas repleta de passado.
Como a memória de sua tia-bisavó influenciou a construção da protagonista e a narrativa do livro?
Minha tia-bisavó escreveu um livro na década de 70, onde narrava sua vida, desde a saída de Portugal. Em sua história há uma perspectiva muito particular de uma mulher de 74 anos que nunca pôde frequentar a escola e a amargura carregou por isso. O livro me ofereceu um panorama, um contexto, uma perspectiva do que seria a vida no início do século XX numa fazenda de café e da sociedade construída no interior de São Paulo e vivida por imigrantes. Eu colhi essas informações e dei à Clara uma esperança, uma leveza, que minha tia-bisavó merecia, mas também a construí a partir das histórias das minhas avós, da minha sogra (filha de imigrantes italianos), de suas experiências, da vida difícil que tiveram e de como enfrentaram a tudo com invejável resiliência. A Clara é essa mulher composta de várias mulheres e carregada também por seus sonhos.
Qual é a mensagem central que você deseja transmitir aos leitores por meio da jornada de Clara na busca pelo conhecimento?
Acredito que a mensagem central da história Os Amores de Clara seja a de não desistir dos sonhos, não deixar de acreditar neles e usar tudo o que estiver ao alcance para ajudar nessa realização, assim como Clara usou os galhos da árvore e o telhado da escola. Força, esperança e resiliência são palavras que definem muito da história e que ajudam a encontrar um caminho. Se a porta não abre, suba no telhado…
Em sua visão, quais são as semelhanças e diferenças entre as lutas enfrentadas por Clara e a realidade das mulheres na sociedade contemporânea?
Muita coisa mudou para as mulheres, embora muito ainda tenha que ser mudado. A luta que Clara e as mulheres de sua época enfrentavam era para primeiro encontrar a própria voz. A história se passa em uma época em que o papel da mulher estava pré-determinado e nele não havia espaço para voz, para o que ela queria, desejava, ou pensava, então ela se recolhia.
Na época de Clara, as mulheres não tinham direitos, mas muitos deveres: coisas que eram esperadas delas, responsabilidades não compartilhadas. Se o casamento não desse certo ou se o casal não tivesse filhos, a culpa era da mulher, sempre ensinada a tomar essa culpa para si. Embora haja reflexos dessa época até hoje, as vozes das mulheres ecoam, bradam, cobram, se elevam contra as dores femininas, há leis que garantem seus direitos, há mais espaço para que suas vozes sejam ouvidas – mesmo que exista muito ainda a ser conquistado.
Como a educação e a paixão por histórias, representadas por Romeu, desempenham um papel na evolução e ambições de Clara?
As histórias de Romeu e seu empenho em garantir que Clara tivesse acesso à educação funcionam como os galhos da árvore em que ela escondia seu livro. Era algo em que ela podia se agarrar, alcançar aquilo que parecia fora de seu alcance. Romeu também tinha os limites impostos pela sociedade de sua época e enfrentava a proibição social e cultural de fazer um curso que envolvia arte.
Felizmente para ele, ao alcançar a maioridade sairia do controle da vontade do pai, algo que seria possível a uma filha mulher, embora esse caminho não fosse fácil para alguém que vivia no campo e trabalhava como agricultor. Romeu ajudou a não esmorecerem as ambições de Clara e, da forma que era possível à época, ofereceu o que estava seu alcance para alimentar a voracidade dela pelo conhecimento, como conseguir um livro de poesias, mesmo que fosse proibido pelo pai e ela tivesse que mantê-lo escondido. Há gestos significativos, como abrir a porta da escola para ela, mesmo que ela não pudesse frequentá-la, ou lhe dar um caderno e um lápis. Romeu, assim, é a outra árvore que dá suporte a Clara.

A representação da opressão de gênero é um tema central em seu livro. Como você acha que essas questões evoluíram desde a época de Clara até os dias atuais?
Muita coisa evoluiu, com certeza. Hoje, pela lei, uma mulher não precisa da autorização o pai ou do marido para estudar ou trabalhar, por exemplo. As mulheres têm direito ao voto, podem ocupar posições de poder, fazer política. Na época de Clara, havia um consenso educacional que matérias como matemática, álgebra e afins, não precisavam ser ensinadas às mulheres, porque segundo os homens que faziam as leis, elas não as compreenderiam. Hoje, elas são físicas, químicas, matemáticas, economistas e se destacam pelo seu conhecimento em todo o mundo.
A inclusão do contexto histórico, especialmente o ano de 1932, foi uma escolha consciente para contextualizar a jornada de Clara. Pode compartilhar sobre essa decisão?
A escolha do ano de 1932 foi realmente algo que fiz para ilustrar a “virada”, não só na vida de Clara, mas de suas descendentes, pois é um marco do primeiro passo para inclusão das mulheres como cidadãs. O momento também corrobora a esperança de mudança, que marca toda a história. A luta pelo voto feminino retrata também a resiliência e esperança das mulheres que vieram antes de nós e que, ao seu modo, não deixaram seus sonhos de lado, não desistiram e também esperaram com confiança, assim como Clara diante do desafio da aprendizagem da leitura e escrita.
“Os Amores de Clara” também aborda desigualdades financeiras. Como essa faceta da história reflete nas oportunidades de vida e sonhos de Clara?
A grande maioria dos imigrantes, principalmente portugueses e italianos que chegaram para trabalhar no Brasil em meados do século XIX e início do século XX, não era de pessoas ricas. A maior parte desses imigrantes partiu para o interior para trabalhar em fazendas, onde o que aguardava era uma vida dura e difícil, com grandes dificuldades financeiras. Como o governo brasileiro pagava passagens e deslocamento de famílias inteiras através dos fazendeiros, essas famílias chegavam endividadas e precisavam quitar as despesas com o trabalho na terra: quanto mais membros da família trabalhassem, mais rapidamente poderiam quitar essa dívida.
Entretanto, eles precisavam comer, se vestir e consumiam nos empórios da fazenda, o que gerava cada vez mais dívidas. Caderninhos de “contas” nasceram nessa época e mantinham as famílias presas a senhores de terra. Clara faz parte desse grupo cujas oportunidades eram limitadas e a perspectiva de conquistar suas próprias terras (que era o sonho da maioria dos imigrantes) não se concretizou; o que restou foi contentar-se em ter um lugar para trabalhar e sobreviver.
Muitos deixaram o interior em busca de empregos nas cidades, mas esse também não era um caminho fácil. A educação não era direito de todos mesmo nas cidades, e o acesso era bastante limitado para pessoas pobres. Os casos de mecenato eram os que ajudavam a proporcionar a educação a filhos de trabalhadores pobres, o que na história surge na figura da “madrinha”, algo bastante comum na época, mas que era uma questão de sorte.
Você menciona que Clara recorda suas memórias através de uma perspectiva madura. Como equilibrar a inocência da infância com a sabedoria da experiência ao escrever sobre o passado?
Esse foi um exercício muito interessante que fiz para construir a história. Eu tive que “ouvir” as vozes da infância daquela época, algo como as narrativas de memórias de nossos avós, aquelas que muitos adoram contar. Essas narrativas são carregadas da visão particular de infância e da ingenuidade com que viam e viviam os desafios da época.
Essas histórias destacam detalhes valiosos para os olhos infantis e isso é tão doce que emociona. Então, a ideia foi realmente mostrar não só o crescimento de Clara, mas seu desenvolvimento emocional e a lenta compreensão da dureza do mundo que a cercava. Na narrativa de Clara, deixei que seu olhar de criança revelasse o mundo, que foi se modificando.
Vale lembrar que estamos falando do início do século XX, quando o mundo conhecido para a grande maioria da população era aquele em que vivia, com fronteiras estreitas, muitas vezes apenas a pequena aldeia, as cercas das propriedades onde viviam e trabalhavam. Não podemos esperar de Clara em sua infância e adolescência a consciência do que acontecia para além de seu mundo e isso aparece na fala dela já adulta, muitas vezes dizendo que “na época, eu não compreendia”. Creio que seja uma reflexão que muitas vezes precisamos fazer para enfrentar o mundo atual, ou um exercício necessário de nos colocarmos no lugar do outro, mesmo que esse outro seja o nosso “eu” infantil. E é aí que vemos como Clara cresceu e amadureceu.
Como a literatura pode ser uma ferramenta para dar voz a histórias que foram silenciadas e para celebrar a força das mulheres ao longo do tempo?
Certamente a literatura é uma rica ferramenta para que vozes sejam ouvidas e eu tenho meu jeito peculiar de fazer isso, apostando em narrativas que apresentam personagens no próprio contexto, sem imputar a elas falas e ações anacrônicas, mas as apresentando em seu universo e mostrando as possibilidades reais de superação em sua época. Acho essencial entrar no passado, buscar lá os elementos narrativos e ser realmente verossímil. Eu uso a literatura, no seu gênero histórico, como ferramenta de compreensão do passado para análise do presente, mas não como um manual de instruções e sim como aquelas histórias contadas por ancestrais. Além de Os Amores de Clara, meu romance histórico As Filhas de Dana celebra a força das mulheres no decorrer do tempo e a perseguição às bruxas em um contexto ainda mais distante, o século XVII. A literatura é um vasto campo onde as vozes podem ecoar e se espalhar.
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