Graziela Barduco: cordelista que rompe padrões e aborda temas femininos na sociedade atual

Luca Moreira
13 Min Read
Graziela Barduco (Roberto Cândido)

Nos cordéis “Minhas Curvas de Estimação” e “O Machista e a Cordelista”, Graziela Barduco, mestre em Artes da Cena e pesquisadora de cultura popular brasileira, desvela as experiências cotidianas vividas por mulheres na sociedade contemporânea. Debruçando-se sobre temas como o machismo arraigado nas relações e a luta contra a gordofobia, a autora utiliza os tradicionais folhetos literários para promover debates essenciais. Em “Minhas Curvas de Estimação”, Barduco relata como os estigmas e preconceitos relacionados ao seu corpo moldaram sua autoestima desde a infância, uma batalha marcada por lutas contra anorexia e depressão. Em contraponto, “O Machista e a Cordelista” reflete a complexidade de manter relações verdadeiras e respeitosas entre homens e mulheres, sem que sentimentos amorosos interfiram.

Utilizando a crítica social característica do cordel, a autora explora uma perspectiva feminista, com o suporte das xilogravuras de Kelmara Castro, para transmitir uma mensagem de libertação, empoderamento e enfrentamento aos preconceitos arraigados na sociedade. Graziela Barduco, multifacetada como escritora, cordelista, atriz e pesquisadora, se destaca não apenas por sua obra literária, mas por seu engajamento em coletivos que promovem a produção literária feminina, como os Teodoras do Cordel e o Mulherio das Letras.

Minhas Curvas de Estimação e O Machista e a Cordelista tratam de experiências pessoais e questões sociais importantes. Como esses cordéis refletem sua própria jornada e engajamento com as temáticas abordadas?

A escrita sempre funcionou para mim como uma ferramenta muito poderosa no processo de cura das minhas feridas, bem como de desafogo de toda a angústia que, vez ou outra (ou seria quase sempre?) insiste tanto em me assolar. E com o processo de escrita de cordel não foi diferente.

Nestes dois novos cordéis, em específico, desenvolvo e amplio este meu cerne da escrita. Toco em assuntos que certamente não são delicados só à minha pessoa – são, para mim, como um grito de libertação, embora seja como a exposição de uma ferida aberta e purulenta, que aos poucos começou a secar.

Os dois são absolutamente baseados em histórias pessoais e reais, e foi necessário que isso fosse posto para fora através de poesia – neste caso, através de cordel, linguagem pela qual sou completamente apaixonada e com a qual estou acostumada a trabalhar – para que eu pudesse, por fim, seguir em frente de forma mais leve.

A gordofobia e os padrões de beleza são temas centrais em “Minhas Curvas de Estimação”. Como você espera que esses temas impactem os leitores e promovam mudanças na percepção da sociedade?

Na realidade eu espero que o impacto nos leitores e leitoras seja mais no sentido do acolhimento e identificação do outro com tal temática, do que a intenção em si de quebra de paradigmas. É a vontade de que o outro se sinta acolhido e de que este sentimento venha acompanhado do estímulo à autoaceitação, emoção esta muitas vezes difícil de ser sustentada em nós mesmos.

Em O Machista e a Cordelista, você explora as complexidades das relações entre homens e mulheres. Qual é a mensagem que deseja transmitir sobre o papel da mulher nesse contexto?

Na verdade, acho que é mais sobre o papel do homem nesse contexto. Que ele se coloque no lugar dele (por assim dizer) e passe a respeitar mais a mulher em toda e qualquer situação.

A fusão da tradição do cordel com questões contemporâneas é uma característica marcante do seu trabalho. Pode compartilhar como surgiu a ideia de usar essa forma literária para discutir temas femininos e sociais?

Eu creio que isso tudo brotou em um momento em que eu me via um tanto sufocada por comentários e críticas negativas com relação ao que vinha produzindo na escrita. Porém, aos poucos observei que tais apontamentos, em grande maioria, vinham de homens e alguns deles até mesmo me desencoravam a continuar no meu caminho de escrita que vinha se desenhando.

Eu cheguei a ficar um tempo travada, o que me fez muito mal. A escrita tem me servido principalmente como válvula de escape das mazelas da vida, de modo que não conseguir escrever é um suplício gigantesco sendo aplicado na minha alma. Foi então que surgiu o poema/décima (estrutura muito utilizada pelo cordel) “Lutei Contra 100 Leões – Todos os 100 Eram Jumentos”, como forma de resposta a tudo isso que eu vinha sentindo. A partir dele, surgiu a ideia de encabeçar o livro (homônimo ao poema), para que eu entendesse, de uma vez por todas (sim! precisei me convencer disso), que ninguém, mas ninguém mesmo, conseguiria me parar.

Minha pesquisa – de trabalho e de vida – gira em torno da cultura popular brasileira. Por isso, recriar, ressignificar e homenagear nossos maravilhosos e maravilhosas poetas, principalmente da região nordeste do país, utilizando as formas e estruturas da poesia popular brasileira, foi o modo que arranjei pra seguir sempre em frente, persistindo, existindo e resistindo, com a principal certeza de que jamais vou deixar alguém me calar.

O apoio das xilogravuras de Kelmara Castro é fundamental para a apresentação visual dos cordéis. Como a colaboração artística contribui para a interpretação e impacto das mensagens contidas nos poemas?

Sou apaixonada pela arte da Kelmara Castro e adoro fazer parcerias com mulheres, principalmente quando o projeto tem essa pegada feminina no cerne. Na realidade, conheci primeiro a Gracie, esposa da Kelmara e responsável por todos os projetos gráficos da Cordelaria Castro.

Todos os meus cordéis foram feitos através desta editora e também têm capa em xilogravuras feitas pela Kelmara Castro. Eu adoro a forma delicada como ela desenha na madeira e depois vem com a goiva para dar vida às obras. E é como se, em cada capa, ela capturasse exatamente a essência do cordel em questão, eternizando-o em um único fragmento cênico, reforçando e valorizando a história que ali é contada.

Você é membro do coletivo Teodoras do Cordel, que busca fortalecer o trabalho das cordelistas. Como essa colaboração influenciou sua abordagem artística e a disseminação das mensagens contidas nos seus cordéis?

Em meados de 2020, fundamos o Coletivo Teodoras do Cordel, formado por mulheres que produzem e difundem a literatura de cordel feminina por meio de diversas ações artísticas, literárias e poéticas. Esse grupo foi formado via Internet durante a pandemia e as primeiras ações, trabalhos e apresentações foram online.

Nós nem ao menos nos conhecíamos pessoalmente e só no ano passado é que passamos a nos encontrar e dar continuidade ao trabalho de forma presencial também. O coletivo foi criado a partir do Movimento Cordel sem Machismo, no qual todas nos unimos em defesa e solidariedade à nossa querida amiga e cordelista Izabel Nascimento, vítima de machismo dentro do universo do cordel. Esse acontecimento deixou a todos e todas muito indignados, bem como acredito que a reação a este evento tenha sido um marco na história do cordel.

O grupo foi totalmente responsável por me encorajar a começar a publicar meus folhetos de cordel. O cordel é uma poesia super complexa devido a sua riqueza e rigor com relação a forma e métrica e eu tinha receio de errar com relação a isso.

As integrantes do coletivo sempre tiveram esse papel de incentivar, empoderar as colegas, bem como de ajuda mútua no sentido de sanar dúvidas e revisar a métrica umas das outras, de modo a nos sentirmos de fato prontas para nos lançarmos de verdade enquanto cordelistas.

A crítica social é uma característica proeminente do cordel. Como você acha que a poesia de cordel pode ser uma ferramenta eficaz para despertar a consciência sobre questões sociais e promover mudanças?

Como a literatura de cordel é um estilo de poesia com o qual o público em geral tem uma grande identificação, fica mais fácil tocar o leitor com aquilo que se deseja transmitir, bem como despertar nele uma possível reflexão. Questões sociais são temáticas recorrentes dentro do gênero e, quando bem desenvolvido, é capaz sim de gerar diálogos necessários nos leitores e que podem contribuir com possíveis transformações.

Em suas próprias palavras, você mencionou que escreve para curar suas próprias feridas. Como o ato de escrever e compartilhar essas histórias impactou sua jornada pessoal e criativa?

A escrita veio para mim principalmente enquanto válvula de escape diante das dores, pesares, feridas, afrontes e dissabores da vida, mas também como ferramenta de reforço e lembrança das alegrias, deleites, sonhos e conquistas que nos visitam no decorrer do nosso caminhar. Acredito que a poesia acabou se tornando um dos meus principais canais de expressão e escrevo desde muito pequena.

Por diversas vezes recorri ao refúgio da elaboração de poemas em momentos de intensa atribulação e grande vulnerabilidade. Porém, penso que só me tornei escritora profissional em meio ao meu processo de pesquisa de mestrado.

Foi um período intenso e extremamente estressante, no qual passei a escrever quase que desenfreadamente como forma de alívio perante à ansiedade do momento. Como fiquei com uma produção muito extensa (e intensa) ao final deste período, decidi publicar meu primeiro livro, o “Na Rima da Menina” (editora Versejar), além de passar a publicar em diversas antologias desde então. E, daí por diante, não mais parei.

Além dos temas abordados nos cordéis, você é mestre em Artes da Cena e pesquisadora sobre cultura popular brasileira. Como essas diferentes áreas influenciam e enriquecem sua expressão artística?

Eu digo que atendi ao chamado do Cordel em meio a minha pesquisa de mestrado na área de teatro, na qual a temática era uma conversa entre o teatro infantil e a cultura popular brasileira. Durante a caminhada, dei de encontro com esse gênero da literatura brasileira tão maravilhoso que é o cordel, pelo qual me apaixonei profundamente: passei a estudá-lo e, mais para frente, a produzi-lo.

O produto final do meu mestrado, além do trabalho escrito, foi um espetáculo infantil chamado “A Menina e o Pé”, que depois virou livro infantil. A obra faz um passeio pelos diversos elementos das manifestações populares brasileiras. Acredito que uma arte chamou a outra e as duas acabaram se misturando, e assim estão até hoje em minha vida.

Como você imagina que os leitores e o público em geral podem contribuir para a promoção da igualdade de gênero e para combater os estereótipos abordados em seus cordéis?

Eu penso mais no fato de tocar o leitor de modo que ele se identifique com o que estou falando. Penso que a transformação social é consequência e algo posterior. O que faço é abrir caminho para a discussão e reflexão, mas para além disso, fazer com que o leitor se sinta acolhido durante a leitura.

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