Em “O Cochilo de Deus” (Ed. Faria e Silva), seu primeiro romance, Raïssa Lettiére conduz o leitor a uma jornada poética e reflexiva, entrelaçando séculos e personagens para abordar temas existenciais como livre-arbítrio, acaso e o significado da vida. A narrativa questiona, com profundidade, o que impede a humanidade de “dar certo”, revelando dramas e enigmas que exploram o vazio espiritual e o sofrimento humano. Escritora e editora experiente, Raïssa entrega uma obra que desafia as fronteiras entre o real e a metafísica, transformando o leitor no protagonista das próprias reflexões.
Sua nova obra, O cochilo de Deus, explora questões complexas sobre a humanidade e o mistério da existência. O que mais te fascinou ao trabalhar essas temáticas, e como você conseguiu equilibrar a densidade desses temas com uma narrativa ficcional envolvente?
A não-resposta por trás de tantos questionamentos humanos me fascina, principalmente a insistência que temos de buscar por definições e assumir verdades que encerrem qualquer dúvida, como se fossem absolutas. A busca é legítima e saudável. A cristalização causa sectarismo e intolerância. A ficção oferece a oportunidade de criar essas respostas sem que elas sejam obrigadas a estar corretas ou passíveis de comprovação.
Ao longo do romance, os personagens transitam por diferentes épocas e experiências, criando uma rede de conexões misteriosas. Como você construiu essas ligações entre eles, e de que maneira elas impactaram a estrutura do livro?
A elaboração dessa interconectividade entre os personagens demandou bastante engenhosidade e releituras para não deixar nenhuma ponta solta. A ideia é permitir que o leitor monte o quebra-cabeça à medida que a história se revela. Ou seja, tratar o leitor como um ser inteligente que possa ir montando a história com as ferramentas e detalhes que ela vai oferecendo a cada episódio, capaz de tirar suas próprias conclusões.
A obra propõe uma reflexão sobre o vazio espiritual e o sofrimento humano. No processo criativo, você se deparou com algum desafio ao explorar esses sentimentos universais? Como você lida com essa profundidade emocional na sua escrita?
Para esse tipo de literatura que eu faço, em que o sofrimento humano é visto sem subterfúgios, há que se partir de alguma questão existencial profunda para o autor, é necessário estar disponível para sentir, se emocionar e traduzir o sofrimento em palavras.
O livro levanta uma grande questão: “Por que a humanidade ainda não deu certo?” Qual foi a principal motivação para abordar esse tema, e de que forma ele reverbera na jornada dos seus personagens?
Julgo-me uma pessoa muito realista, que busca afastar qualquer nível de ilusão a respeito de si, do outro, da vida. Enquanto não olharmos o outro como um igual, enquanto não entendermos que todos são dignos de oportunidades e tratamentos humanos, não podemos dizer que a humanidade deu certo. E acho que estamos muito distantes deste diagnóstico positivo. Não preciso ir muito longe nesta análise. Basta olhar a primeira página dos jornais. Meus personagens refletem o desvario da humanidade, que sofre e faz sofrer. Ora agindo com boas intenções, ora não.
O romance mistura uma escrita poética e filosófica. Como você descreve sua jornada de encontrar o tom certo para expressar temas tão abstratos, como o livre-arbítrio e o acaso, de uma maneira que toque o leitor?
Sempre gostei de poesia e amo metáforas. Penso que por isso minha escrita apresente esse tom. E os temas existenciais flertam com a filosofia. Como estou sempre divagando nessa seara, é natural encontrar essa abordagem na minha escrita.
Em O cochilo de Deus, há uma forte presença do mistério, especialmente em relação ao elemento observador da narrativa. Como você se sente ao criar esse tipo de personagem, que parece apenas observar, mas também tem um papel crucial na reflexão da obra?
Bom você ter notado esse elemento observador. Ele é mesmo crucial no meu livro. E pensar que nós, na maior parte do tempo, refletimos essa postura ao longo da vida. Apenas observamos o sofrimento humano…
Seu primeiro livro de ficção foi uma coletânea de contos, e agora você estreia com um romance. Quais foram as maiores diferenças que você encontrou ao escrever o romance, e como essa transição influenciou sua maneira de contar histórias?
O conto tem uma estrutura narrativa muito peculiar que me encanta, duas histórias correndo paralelas, uma na superfície, clara, e outra em águas mais profundas. De certa forma a estrutura deste romance foi concebida para que apresentasse essas características também.
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