Nova Iguaçu se prepara para receber uma jornada artística singular com a inauguração da exposição “Quadrelas Fluminenses”, do renomado artista visual e diretor de arte Raimundo Rodriguez. Conhecido por seu papel crucial em produções televisivas aclamadas como “Hoje é Dia de Maria” e “Velho Chico”, Rodriguez agora apresenta sua mais recente obra ao público, sob a curadoria de Julio Ferreira Sekiguchi. A mostra, gratuita, promete uma imersão nas cores e formas da estética arquitetônica popular fluminense através de quarenta peças inspiradoras, exibidas em dois locais distintos a partir de 13 de abril.
O que o motivou a criar a série “Quadrelas Fluminenses”, e por que escolheu madeira e lata como principais materiais para estas obras?
Eu desenvolvo trabalho com lata desde 1998, 99. É um material que eu me afeiçoei muito por ter em abundância nas regiões que eu frequento, que eu vivo, que são a Baixada Fluminense e as periferias de modo geral. Todas as pessoas, principalmente das comunidades mais pobres, usam a lata para todo tipo de trabalho, transformam a lata em todo tipo de utensílio e transformam a lata em arte. Simples assim. As quadrelas são panos de parede, são panos de muro, no caso são planos de muro, planos de parede e aquilo sempre me remete a essas paredes descascadas, as paredes malconservadas, os detalhes arquitetônicos das paredes, então esses planos de alvenaria de muro ou de casa chamam-se quadrelas, então eu transformei, eu fiz uma leitura de quadrelas fluminenses desse olhar que eu tenho das casas antigas, das texturas das tintas que estão descascando. Fiz uma releitura, uma interpretação visual no meu trabalho, uma interpretação do que eu vejo nas casas.
Pode compartilhar um pouco sobre o seu processo criativo? Como você seleciona e transforma materiais cotidianos em arte?
O meu trabalho é cíclico, ele não acaba nunca. Por exemplo, essas latas, o material físico da quadrela, ele é resultante dos trabalhos anteriores. Por exemplo, o cenário de Meu Pedacinho de Chão, que eu fiquei com grande parte desse material. O meu pedacinho de chão foi feito todo em lata, toda a parte minha série chamada Latifúndio é feita a partir da lata…Eu transformei a cidade inteira de Meu Pedacinho de chão, 27 prédios de dois andares, todos em lata. Mais de 1500 m². Foram 20 toneladas de lata abertas, planificadas, marteladas, cortadas e pregadas, feito casas. Quando acaba a novela, que se desmonta a cidade, eu resgatei muito desse material. E esse material volta em forma de quadrela. Então, o trabalho é cíclico. Dez anos depois da produção, em 2024, ele se transforma numa exposição inédita. A maioria das pessoas que construíram o cenário eram oriundas do antigo lixão de Gramacho, da cooperativa de catadores de Gramacho, então eles já tinham muita habilidade com a lata e me ajudaram muito a construir esse universo.
De que forma a estética arquitetônica popular do Rio influencia seu trabalho, especialmente nas “Quadrelas Fluminenses”?
Me influenciou da forma mais natural possível, porque quando você vive na cidade, você olha para os prédios, os prédios te remetem alguma sensação e essa sensação eu transformei no meu trabalho de artes visuais. É sempre assim, eu estou olhando para todos os lugares e em todos os lugares eu estou aprendendo alguma coisa com as formas que eu vejo. É muito imersivo, eu olho a cidade como uma plataforma de possibilidades, eu olho as soluções periféricas e de comunidades como soluções artísticas, e o que eu faço é o que muitas pessoas usam num portão, por exemplo, eu faço virar um quadro, uma obra de arte.
Como foi trabalhar com Julio Ferreira Sekiguchi na curadoria da exposição? De que maneira a visão dele contribuiu para a apresentação das suas obras?
Eu o conheço há 32 anos, e sempre trabalhamos juntos. Trabalhamos juntos em parcerias, em trabalhos artísticos. Esta é a primeira vez que ele faz uma curadoria para mim e foi uma coisa muito natural trabalhar com o Júlio em termos de curadoria. O que o Júlio faz como curador é tentar organizar esse caos que é o meu trabalho de uma forma que fique mais interessante no conjunto da exposição. Ele veio ao Ateliê e sugeriu que eu fizesse mais de uma determinada série, que eu fizesse mais de uma determinada forma para poder compor e contar essa história. Então, assim, fico muito à vontade e ele também para dizer “isso aqui vai, isso aqui não vai”. E ele fala muito sobre a minha família no texto da apresentação porque ele conheceu meus pais, conheceu minha família, então, ele sabe que a minha família, a minha origem tem muito a ver com a construção do meu trabalho.
Julio Ferreira Sekiguchi menciona sua preocupação com o descartado e as sobras do mundo. Como você vê a arte como meio de dar nova vida a esses materiais?
Não só a arte, eu acho que a vida tem que dar nova vida para a vida, porque se não nós vamos mergulhar no caos de resíduo. Eu penso, o que é resíduo? Resíduo para mim é tudo aquilo que não presta, mas o que que não presta para um vai prestar para outro, é mais uma questão de olhar. Eu prego muito o consumo consciente, você não vai deixar de consumir, mas você tem que consumir conscientemente. O reaproveitamento é inerente ao ser humano, ele reaproveita tudo o tempo inteiro, só que quando você tem um consumo desenfreado, você não aproveita. Você joga fora para comprar um novo, e nem sempre o novo ele vai cumprir as funções do antigo. Eu gosto de pensar que a arte pode trazer uma nova luz para esses objetos, para essas coisas descartadas. É mesmo de suscitar um questionamento sobre o que é arte, sobre o que é materialidade. Eu vivo me perguntando, quase que diariamente “por que eu faço isso?” “Para que eu faço isso? Qual o sentido disso?” Eu acho que o sentido disso é passar o tempo, da melhor maneira possível, passar o tempo de uma forma digna, passar o tempo sem destruir o planeta, passar o tempo sem destruir a sociedade. Então é tentar reconstruir alguma coisa com uma pequena contribuição, como pessoa, como ser humano. E a minha forma é transformar em arte. A minha contribuição é essa.
Sekiguchi sugere que para entender suas obras, é preciso entender seu contexto e visão de mundo. Como você descreveria essa visão e de que forma ela se reflete em sua arte?
É porque eu vejo arte em tudo. Se eu estou na televisão, no teatro, numa galeria, se eu estou numa animação cultural, dentro de uma escola, na minha família, em qualquer lugar eu estou vendo e fazendo arte. Minha visão de mundo é uma visão de um mundo com consumo mais consciente e que as pessoas possam transformar em arte tudo aquilo que vê. Minha visão de mundo é sempre através da arte, tudo pode ser arte. Arte é um conceito.
Você tem uma carreira extensa como diretor de arte em produções televisivas. Como essa experiência influencia seu trabalho artístico, e há alguma interseção entre esses dois campos?
Não tenho distinção de meio. Eu faço arte em todos os lugares. Sempre que vou para um projeto levo meu trabalho autoral. Eu faço meu trabalho para atender às demandas, seja da dramaturgia, um desfile, seja qual for, sempre com meu trabalho e colocando a minha visão de mundo.
Quais artistas, seja da história da arte ou contemporâneos, influenciaram seu trabalho e de que maneira?
Eu sou um aficionado por livros de arte. Então diria que, Bispo do Rosário é o primeiro, Robert Rauschenberg, todos os novos realistas franceses, e os meus parceiros, o próprio Julio Sekiguchi, Marco Cardoso, Edmilson Nunes, Deneir, Jorge Duarte, são os meus contemporâneos. Roberto Tavares, Ronald Duarte, com quem eu fundei o grupo Imaginário Periférico. Tudo que você vê de certa forma te influencia, e a história da arte é isso. Isso sem falar dos mestres, Leonardo Da Vinci, Van Gogh, tem sempre que aprendê-los, e tem seu lugar de destaque no aprendizado. Me inspiro muito nos artistas populares, aqueles que são das comunidades, que não têm um mercado de arte estabelecido mas que tem um trabalho potente. Esse tipo de arte, de pessoa, de artista, me encanta muito e eu me inspiro em todos eles. E nos cientistas, cineastas, em tudo, tudo que é forma de arte. E às vezes até a pessoa pode falar que não é arte, mas é sim, no fundo, uma obra de arte. Todos os artistas de alguma forma me influenciam.
Qual mensagem você espera que o público leve consigo após visitar a exposição “Quadrelas Fluminenses”?
Eu espero que todos saiam da exposição com a vontade de salvar o mundo (Risos). Eu acho que quando as pessoas vão à uma exposição de arte não tem, obrigatoriamente, que sair com algo a mais ou a menos. Eu acho que faz parte do aprendizado e deveria fazer parte da rotina de qualquer cidadão ir a exposições, galerias de arte, museus, teatros, enfim… Contemplar a arte. Então o que eu espero é que as pessoas fiquem felizes e que eu possa contribuir de alguma forma para o conhecimento em alguma área dessas pessoas. Que possam ver e compartilhar um pouco da minha visão de mundo.
Após “Quadrelas Fluminenses”, há algum projeto ou tema que você está particularmente interessado em explorar em sua próxima série de trabalhos?
Eu estou sempre com 200 projetos em andamento. Quando eu falo de 200, não é força de expressão, não. São centenas mesmo. Eu penso um milhão de coisas ao mesmo tempo. O próximo projeto que eu tenho que realizar é o curso de direção de arte também para Nova Iguaçu. Tem várias exposições marcadas para o ano que vem. É como eu já falei lá atrás, o meu trabalho é cíclico. Eu tenho trabalhos de 1993 que eu nunca expus, uma série inteira, de pedra, então eu penso em fazer uma exposição individual sobre isso. Penso em inúmeros outros. A princípio farei mais três exposições individuais inéditas, porque eu trabalho 12 horas por dia, todo santo dia. Eu vou produzindo, vou produzindo. Nem tudo eu mostro. Tem que estar preparado, tem que ter um tempo para se preparar e para mostrar. E nós não temos espaço suficiente na cidade, principalmente, para expor, para ter uma exposição com frequência nos lugares. Temos poucos espaços culturais, temos poucos espaços expositivos. Então, eu acho que também é uma meta minha transformar o Cenarte, onde eu vou expor Quadrelas, de novo no espaço vivo de arte e de cultura.
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