A artista portuguesa MERAI usa a música como uma poderosa ferramenta de catarse e transformação, trazendo à tona a faixa “O Meu Corpo Não” que converte a violência sexual em um grito libertário. Com uma carreira multifacetada, MERAI, de 23 anos, combina influências que vão desde o afropop até elementos tradicionais portugueses. O som é sombrio, carregado de ruídos que capturam a ansiedade da vítima e um ritmo constante que evoca um campo de batalha. O vídeo, repleto de simbolismo e dirigido pela própria artista, destaca a sororidade entre mulheres e desafia a toxicidade masculina. MERAI demonstra uma maturidade conceitual em sua obra, com o lançamento do EP “Fénix” e sua participação em eventos culturais significativos, incluindo a Marcha Feminista de 8 de Março de 2023.
Qual foi a inspiração por trás da composição de “O Meu Corpo Não”? Como essa música surgiu e qual é a mensagem que você quer transmitir com ela?
Hm… Esta é uma pergunta ambivalente, porque temos a questão conceptual, e a questão musical. A decisão de abordar este tema vem de saber que é uma ocorrência comum. É de me encontrar em círculos de mulheres e ouvir que essas são dores comuns a muitas de nós, e por isso achei importante tocar a ferida, com consciência e carregando o peso que o assunto traz consigo. Há alguns, eu chamo-lhes “hinos feministas” que me inspiram muito, tais como “Todxs Putxs” da Ekena, e “Canción sin miedo” da Vivir Quintana. Ambas estas canções são corajosas, falam sobre união de pessoas face a injustiças e são daquelas que levantam os pelos da pele (em Portugal nós dizemos “pele de galinha”, não sei se também se diz assim no Brasil). Felizmente já tive algumas pessoas a dizerem-me que “O Meu Corpo Não” lhes deu pele de galinha, tal como estas canções fizeram comigo.
A canção narra a jornada de uma vítima de violência sexual. Como você abordou a complexidade desse tema na música e no videoclipe?
Tentei dar uma cronologia a essa complexidade, perceber quais são as diferentes fases de processamento de um trauma. Seguindo o processo da vítima, na letra e na música temos a confusão, a dor, o desespero, a raiva e, finalmente, vingança. Acho que a melhor forma para comunicar com pessoas é através de símbolos, pequenas unidades de significado. Musicalmente, o tambor constante é como um campo de batalha. Há um monte de sonzinhos que pus lá de propósito para criar ansiedade e desconforto, imensas percussões que estão espalhadas pelo campo auditivo (ouve-se uma à frente, uma ao lado, outra atrás) como se quem estivesse a ouvir estivesse a ser rodeado de um monte de sons (ou pessoas) estranhos. As respirações que adicionei no refrão têm esse mesmo papel de causar ansiedade, é como se alguém estivesse a tentar fugir. A minha voz ganha por exemplo uma distorção quando a narrativa vira. Quando digo “o meu luto não é e nunca será morte do espírito, axé ou do orixá”, mostrando a força que há por detrás da história de uma vítima, muitas vezes chamada de sobrevivente. Aí a minha voz não é só minha, é a voz de todas as mulheres e do Sagrado Feminino. Por isso adicionei-lhe uma camada mais grave, que se sobrepõe à minha. Resumindo, procurei ser fiel à complexidade não falando dele de uma forma unidimensional, tentei explorar os vários sentimentos que uma situação destas pode causar. E a canção tinha que terminar com empoderamento.
Você mencionou que a canção é uma demonstração de sororidade entre mulheres. Como esse conceito se reflete na música e no vídeo?
No vídeo isso está claro pela presença de várias mulheres, e do que nós fazemos juntas. Há planos de nós a dormirmos, de nós a dançarmos, de nós simplesmente a respirarmos juntas… Há um plano por exemplo que sou eu literalmente a cair de um lado para o outro para cima de delas, da Irana e da Leonor. Elas são literalmente o meu apoio. Mas não há nada que reflita isso mais como as últimas frases da canção que são “Fazes a uma afronta vimos todas em força. Fazes a uma afronta só deixamos os ossos”. E sobre essa frase acho que já está tudo dito, ahahah.

No videoclipe, existem muitos elementos simbólicos. Pode compartilhar mais sobre o significado por trás desses símbolos e como eles se relacionam com a mensagem da música?
Visualmente, usei máscaras para causar medo e descrever estas forças que lutam (o Divino Feminino e a Masculinidade Tóxica) como não sendo humanas. Há metáforas visuais como o rapaz com a bicicleta que circunda as mulheres, imitando os círculos que o predador faz à volta das presas. A malagueta que eu dou de comer ao rapaz é uma encenação do mito de Éden, quando Eva dá de comer a maçã a Adão, mas neste caso é uma malagueta, pois a malagueta é picante, ou seja perigosa, e é um lembrete para não subestimar uma mulher. As mãos que me “afogam” no refrão servem para retratar esta realidade sufocante do sentimento de posse da sociedade para com o corpo da mulher. A cor vermelha em constante destaque também não é à toa. É uma cor feminina, a cor da vida que nós damos, mas também a cor da morte, por isso para mim é a cor que melhor reflete os ciclos a que estamos todos sujeitos. Nenhum elemento foi colocado à toa no vídeo, tudo foi escolhido a dedo e tudo tem o seu porquê.
Como foi dirigir o videoclipe? Quais foram os desafios e recompensas de trazer essa narrativa complexa para a tela?
Honestamente adorei a experiência. Foi muito desafiante, mas eu gosto de desafios. Para além disso, para mim a verdadeira arte é aquela que nos transforma, que nos transmuta, e torna-nos melhores e mais completas. E eu sinto que me transformei, com este desafio. Por isso é que gosto tanto de fazer arte, descubro coisas sobre mim, sobre o mundo no processo, e saio mais rica do que entrei. Talvez o maior desafio tenha sido desenhar o storyboard ahahah eu gosto de desenhar mas não sou nada boa em desenho realista. Há sempre inúmeras coisas que não temos em conta ou que falham mesmo na Hora H. Por exemplo, lembrei-me agora de um desafio, que não foi dramático, mas que foi inesperado para mim. Eu queria queimar uma flor para o plano final mas esqueci-me que as flores são tipo 80% água, portanto praticamente impossíveis de queimar. Até percebermos que não ia dar, “queimámos” imenso tempo. Tivemos que encontrar uma solução, que foi um pinheiro seco que eu tinha em casa. No entanto não houve nenhum obstáculo enorme que me fizesse entrar em desespero e pensar que não seria possível completar o projeto. Também tinha um conjunto de pessoas incrível comigo durante a rodagem, e na pós-produção também. Na rodagem do clipe éramos todas mulheres à exceção do Martim, que é o homem que aparece no vídeo. Recompensas são… Todas. É muito recompensador ver que uma coisa que visualizaste e acreditas se materializa, mas acho que isso só se faz quando outras pessoas acreditam também. É essa a essência da religião!
MERAI, sua música incorpora uma ampla gama de influências musicais, desde afropop até música eletrônica. Como você acha que essa diversidade contribui para contar histórias poderosas como “O Meu Corpo Não”?
Eu penso em mim como uma pessoa agregadora. Não gosto de excluir, antes pelo contrário, gosto de incluir. Não dou muitas festas mas quando dou festas, pego nas pessoas mais diferentes umas das outras, que são as pessoas da minha vida, oriundas de backgrounds completamente diferentes entre si, mas que para mim têm todas uma coisa em comum: são pessoas que brilham. E à partida um grupo de pessoas que não têm nada a ver umas com as outras, já dizem que se adoram e mantêm contacto, continuam amizade desde aí. Das poucas festas que dei isto aconteceu, e eu fiquei felicíssima. Isto pode não parecer ter a ver com a pergunta mas para mim tem. Eu gosto de juntar coisas diferentes e perceber que há harmonia entre elas. Tanto nos géneros musicais como nas temáticas gosto de ser diversa, porque eu me sinto assim. Temos inúmeras histórias na nossa vida, inúmeros lados de nós, e eu quero no meu processo artístico explorar e expor as diferentes expressões com que o meu Eu se assume. E se calhar devia dar mais festas.
“O Meu Corpo Não” tem uma sonoridade sombria e intensa que combina com a mensagem poderosa da música. Como você abordou a criação do arranjo e da produção da faixa?
É verdade, pois tem. Boa pergunta. Posso dizer que a música começou com a percussão base e a voz. Gosto muito de criar à volta da voz que é o meu instrumento principal. A palavra também acho muito importante, mas para mim na música não é uma coisa desligada da voz, elas têm que casar e estar num casamento feliz, próspero e duradouro, senão uma delas só vai causar estragos à outra. Defini logo que no refrão queria um grito e um ritmo diferente, mais hipnotizante. Defini também que não queria que a música fosse derrotista, e que tivesse um final… Macabro, poderoso e perigoso. Depois fui adicionando elementos, várias percussões, synths e cordas… A canção soa minimalista mas tem umas 76 pistas, sem contar com os efeitos. Eu deixei o meu lado mais sombrio tomar conta da criação, como não podia deixar de ser. Acho muito importante estarmos cientes e trabalharmos com o nosso “dark side”.
Além da música, você também é uma artista visual e dirigiu o videoclipe. Como essas diferentes formas de expressão se conectam em seu trabalho?
Não me considero uma artista visual… Talvez no futuro, mas agora não lhe poria esse nome. Foi um milagre ter feito isto ahahah, se se repetir talvez possamos chamar arte. Na verdade já estou em projetos que garantem que se repete, mas… Não posso revelar. O meu pai é fotógrafo e a minha mãe bailarina por isso desde pequena estive em contacto com a arte, e estas duas são muito visuais. O meu caminho foi mais por coisas que não se vêem como a música e a escrita, mas de facto tenho gosto pelas artes visuais e acho que a minha infância e educação têm a ver com isso. Todas as artes se interligam (lá está aquela tendência agregadora). E quantas mais eu puder juntar ao que faço melhor. E sempre que puder trazer pessoas e artistas magníficas para criar com, fá-lo-ei e serei muito feliz porque partilhar é a forma como ganhamos mais. Somos muito pequenos sozinhos, e o que eu posso ter de “artista visual” depende também de muitas pessoas criativas à minha volta.
A sua arte frequentemente explora temas profundos, como vida e morte. O que a motiva a abordar esses tópicos complexos em sua música?
É a minha personalidade mesmo, não gosto muito de conversa fiada, gosto de passar logo às perguntas importantes. Mas também gosto de uma boa música só para dançar, acho que toda a música tem o seu contexto, e não me oponho a explorar temas mais simples. Tenho uma canção chamada “Deixa-te Levar” que lancei no meu 23º aniversário este ano e fala precisamente sobre descomplicar a vida, vivê-la simplesmente e ser feliz com isso.
Como você espera que “O Meu Corpo Não” afete o público e, possivelmente, promova discussões mais amplas sobre a questão da violência sexual?
Eu ficaria cheia no coração de saber que há pessoas que ouvem e assistem ao vídeo desta canção e se sentem ouvidas, que esta narrativa as ajuda a processar coisas que lhes aconteceram ou a pessoas próximas de si, que no final as faça sentirem-se empoderadas e que não estão sozinhas. O melhor cenário seria imaginar que despertava debates profundos sobre o que é a violência sexual e porque ocorre. Espero que possamos pensar o que devemos curar em nós seres humanos e sociedade para que isto pare de se perpetuar. Espero também que as pessoas vejam a força da Mulher, mesmo na dor, mesmo no desespero. Espero que percebam o poder da raiva, e que ela é uma ferramenta poderosa de mudança.
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