Com o lançamento de “Adiref Aul”, a cantora e compositora congo-brasileira Marissol Mwaba apresenta uma obra que reflete reinvenção e introspecção. A música, cujo título é “Lua Ferida” ao contrário, é fruto de uma técnica única chamada “Reversas de Lossiram”, desenvolvida pela artista para reverter composições e revelar camadas ocultas de significado e emoção. Inspirada por sua infância, quando se encantava ao cantar músicas de trás para frente, Marissol explora uma sonoridade inédita em um projeto que também celebra a conexão entre música e dança, com fortes influências da cultura árabe e colaborações marcantes.
Você descreve “Adiref Aul” como um reencontro consigo mesma e com a sua arte. Qual foi o momento mais marcante dessa jornada em que você sentiu que estava realmente redescobrindo algo profundo e único na sua música?
Acho que cada etapa dessa música representou um momento importante. Ela começa desde o momento em que, há muitos anos, tive a coragem pela primeira vez de cantar ao vivo uma música reversa. Fui muito incentivada pelo meu irmão, pois eu ficava com muita vergonha. Pensava: “Nossa, vou cantar uma música ao contrário. Perguntarão que língua é essa, e eu vou dizer que é português ao contrário.” Enfim, nunca tinha visto ninguém fazer isso, e até hoje não sei se alguém faz dessa forma – de cantar de fato uma composição e arranjá-la para que seja uma música independente e inteligível de trás para frente.
Eu relutei um pouco para fazer isso, mas, a partir do momento em que internalizei que era possível apresentar isso ao público e que o público sentia algo, já considerei que estava no caminho de Adirefaú. Nas experiências de cantar Adirefaú ao vivo, percebi que o público se envolvia, e isso foi me dando o sentimento da batida, que também considero envolvente. É uma batida mais puxada para a música árabe, influenciada pela minha vivência com a dança do ventre e pelo estudo profundo do Muaim, na escola de artes onde sou orientada por Jade Eljabel. Nessa escola, temos um estudo aprofundado do Mambê, da cultura e investigamos os instrumentos tocados e o contexto cultural de cada elemento. Acho que essa familiaridade me deu mais possibilidades de explorar essas sonoridades na música.
Senti que Adirefaú estava chamando por esse tipo de batida, e isso representou mais um passo para mim, porque foi um mergulho profundo em ligar a música que faço com um dos tipos de música que estudo. O outro passo foi no momento de produzir o beat da música, unindo todas essas referências, também com a colaboração de Lucas Romero, que fez a produção musical comigo. Ele trouxe muitas coisas interessantes, e eu fui conseguindo me ver naquela junção de influências. Esse também foi um passo importante, pois sinto que foram descobertas profundas e únicas. Passos que mostram que é possível unir muitas das influências e referências atuais que tenho na minha vida.
Sempre falo nas entrevistas sobre as minhas influências, como a mistura das músicas de origem africana, devido à minha origem como Congo-brasileira, com as músicas que ouvi enquanto crescia no Brasil. Misturar essas referências atuais, que venho estudando nos últimos oito anos com Jade, que são mais recentes na minha vida, também foi um mergulho profundo, pois ser artista é um eterno processo de descobrir, redescobrir, agrupar e desagrupar.
Outro passo foi quando a música se uniu à dança para a performance ao vivo, onde fiz toda a preparação com Jade. Mariana Quadros coreografou uma parte, Jade coreografou outra, e a Jade me deu toda a orientação de como me apropriar da minha própria dança. Isso veio junto com a música, tornando-se um passo profundo no sentido multi-arte. Tudo isso que Adirefaú me trouxe também me ajudou no aprimoramento como cantora, especialmente quando tive a oportunidade de fazer preparação fonoaudiológica com a minha fonoaudióloga, Glaucia Verena, para conseguir dançar a dança do ventre e cantar ao mesmo tempo. Nunca tinha visto ninguém ser preparado para dançar a dança do ventre e cantar ao mesmo tempo, e como unimos todas essas coisas, o treino cotidiano também se tornou um lugar de aprofundamento na relação com a arte.
Sinto que Adirefaú passou por vários momentos de redescoberta, algo profundo e único, não só na música, mas também em mim como artista. Nas possibilidades que vislumbro, e nas que ainda não vislumbro, mas que só de ter essa possibilidade que Adirefaú trouxe, me dá sede de descobrir outras coisas também, que talvez nem imagine agora.
Adirefaú realmente é um abridor de várias possibilidades. Um momento emocionante para mim foi ver a letra da música ao contrário no Vagalume. Eu cresci vendo cifras e coisas no Vagalume e nunca tinha visto algo de uma música que fosse realmente de trás para frente. Ver minha música lá, dessa forma, foi muito bonito. Foi um momento de enxergar a minha carreira como um caminho que está abrindo possibilidades, e pode gerar insights para outras coisas que talvez eu nem imagine. Enfim.
A técnica que você desenvolveu, “Reversas de Lossiram,” é fascinante e bastante única. Como foi o processo de transformar uma curiosidade infantil em uma metodologia artística tão elaborada?
Esse foi um processo de anos. Não foi algo pretencioso. Quando comecei a inverter as músicas, não tinha a intenção de “uau, vou fazer isso para apresentar isso”. Foi uma coisa realmente movida pelo sentimento, porque eu estava ali, na infância, encantada com palíndromos e tal. Então, eu peguei e virei uma música ao contrário, uma das minhas composições, por falta do que fazer, criança brincando.
E, ao virar, comecei a gostar de algumas sonoridades que estavam surgindo. Sempre que ouvia, comecei a cantarolar. No início, não sabia como cantar aquilo, nem imaginava que poderia cantar aquelas palavras. Mas, com o tempo, percebi que estava aprendendo a melodia, sem saber a letra. Quando gravei pela primeira vez, cantando a melodia, fiquei encantada. Pensei: “Meu Deus, imagina se eu cantar direitinho!”
Foi aí que comecei a aprender e a descobrir, e percebi que a escrita me ajudava a entender melhor aquelas palavras ao contrário. Comecei a anotar que, às vezes, a forma como eu lia ou escrevia uma palavra não condizia com a pronúncia, por conta do meu sotaque ou da forma como a palavra era pronunciada. Um exemplo é “bom dia”. Se for falar exatamente como está escrito, ao contrário, vai ficar algo como “aizdmob”. E, se eu virar isso, vai dar uma sonoridade que não corresponde ao sotaque com o qual estou falando. Se cantar dessa maneira, não vou estar pronunciando a palavra corretamente de trás para frente. Então, pensei: “Preciso fazer um estudo fonético”.
E isso aconteceu ao longo de anos. Já mais velha, na faculdade, tive algumas aulas de fonética. Eu sempre fui apaixonada por idiomas, e isso também me guiou bastante. Comecei a pensar: “Ok, tem um jeito certo, preciso entender como expresso essas palavras”. Voltando ao exemplo do “bom dia”: ao contrário, ele fica mais próximo de “aizdmob”. E aí, a questão é: onde coloco a tônica? Se eu não colocar no lugar certo, a palavra não vai soar corretamente.
Fui estudando isso aos poucos e criando uma escrita minha, algo que fosse inteligível para mim. Hoje, quando olho meus textos ao contrário, consigo ler de forma correta, com a pronúncia e a entonação adequadas, devido às sinalizações que fui criando para me localizar com mais facilidade. Com o tempo, esse processo foi se desenvolvendo e consegui dar mais vida às melodias, acompanhando as letras expressas de forma correta.
Hoje sou apaixonada por isso. Sempre que tenho um pouco mais de tempo e quero explorar, escuto melodias novas que estão escondidas nas músicas que fiz, reviro e vou aprendendo. Hoje em dia, é um processo mais dinâmico, mais rápido, devido a todo esse desenvolvimento da grafia e do método de escrita.
A influência da música e dança árabes é uma parte central de “Adiref Aul”. O que mais te encantou nesse universo e como essa colaboração com Jade el Jabel influenciou sua visão artística?
Acabei falando um pouco sobre isso na primeira pergunta, né? Mas, realmente, essa influência é algo muito central. Acho que várias coisas me influenciaram em relação à presença da Jade enquanto mestre na minha vida. Uma das principais é a profundidade da didática dela. No Domo Aine, temos acesso a uma didática muito profunda. Não é um estudo raso, sempre voltamos aos conteúdos e tudo é feito de uma maneira que nos dá confiança para nos descobrirmos dentro do que estamos estudando. Em muitas aulas, ela também faz paralelos com a cultura brasileira. Estudamos ritmos diferentes e aprendemos a imprimir nosso próprio estilo no que estamos aprendendo.
Isso tudo dialoga muito com bailarinas profissionais, que, acredito, são a maioria das estudantes da Jade. Grandes professoras do Brasil, como Mariana Quadros, que também colaborou na coreografia, são alunas dela até hoje. Ela ensina com a didática voltada não só para bailarinas e professoras, mas também para seres humanos. Então, eu trouxe isso para o meu universo e pensei: qual é a minha profissionalidade? O que eu sou? Eu sou profissional da música. Fui trazendo as explorações e provocações que ela trazia, pensando nas bailarinas, e também para a música. E, com isso, fui descobrindo minhas próprias conexões em relação a esse conteúdo.
O conhecimento dá liberdade. A partir do momento que você se sente seguro com um determinado conhecimento, ganha liberdade para aplicá-lo. Acho que foi nesse movimento que encontrei coragem para explorar essa vertente de musicalidade dentro da minha própria arte. Queria muito trazer alguém especialista na rítmica árabe para tocar o pandeiro na música, e a Jade topou. Ela mesma se prontificou. Eu estava procurando alguém para gravar, e ela pensou: “Vai ser complicado encontrar um instrumentista e negociar valores.” Então, ela foi. E foi a primeira vez que ela fez algo assim, gravando em estúdio e participando de uma faixa lançada. Foi muito bonito ver isso, porque também foi uma descoberta dela nesse lugar.
Essa troca foi muito enriquecedora. A Jade não só gravou o pandeiro, mas também os snujes, o tamborim e os coros. Ela também canta. Inclusive, uma das coisas que ela traz no Domo Aine é o grupo chamado ESTA, dentro da escola, composto por bailarinas profissionais e grandes professoras do Brasil. E, nesse grupo, elas têm momentos em que cantam e dançam. A Jade também canta, e tivemos essa troca, porque eu também fui professora de canto dela.
Foi uma grande troca e uma influência mútua, não apenas no campo da música ou da dança, mas como artistas. Nos inspiramos e nos encorajamos mutuamente. Tudo isso veio de um preparo, de uma pesquisa, e o resultado é esse trabalho. O que é bonito de acompanhar é que tudo surge de um processo longo. Na hora, parece que aconteceu de repente, mas, quando olhamos para trás, vemos que é uma história longa, cheia de detalhes, que culmina nesse lançamento.
O videoclipe de “Adiref Aul” foi gravado em Florianópolis e Paris, duas cidades com significados distintos na sua trajetória. Como essas locações contribuíram para contar a história da sua música e da sua transformação pessoal?
Uau! Essa pergunta é boa! Fiquei agora refletindo sobre a minha vida. Essas duas cidades, Florianópolis e Paris, têm significados muito especiais para mim. Florianópolis é o lugar onde me tornei artista, onde me tornei profissional da música. Eu me considero uma artista da cena catarinense; foi lá que me criei musicalmente. Embora eu seja uma pessoa de vários lugares e meu coração pertença a muitos deles, um desses lugares é Floripa, que é a cena artística e musical que me forjou.
Além disso, Floripa é onde tenho minha família. A maior parte da minha família nuclear está lá. Então, é uma cidade muito, muito especial para mim, tanto para a minha trajetória pessoal quanto para a minha carreira artística.
Paris também é um lugar muito especial. Desde pequena, sempre fui apaixonada por Paris, sempre sonhei em vir para cá. Quando era adolescente, tive a oportunidade de passar férias aqui, pois tenho família em Paris. Depois, quando estava na universidade, fui agraciada pelo programa Ciências Sem Fronteiras e estudei aqui. Fui estudante da Universidade Federal de Sergipe e fiz intercâmbio na Sorbonne, estudei lá e no Observatório de Paris, e depois estagiei no Instituto de Astrofísica de Paris. O período desse intercâmbio coincidiu com o lançamento do meu primeiro álbum, Luz Azul, que marcou o momento de minhas primeiras composições gravadas e lançadas — algo muito especial para a vida de um artista.
Fiz o show de lançamento aqui, em Paris, e logo depois fui para Florianópolis para outro show de lançamento. Eu nunca tinha me dado conta disso, mas é incrível como tudo se conectou: Paris e Floripa. E o álbum Luz Azul tem uma música muito transformadora para mim e para meu irmão, François Muleka, chamada Notícias de Salvador, que é uma coautoria nossa. Essa música depois foi regravada pela Luê de Luna no primeiro álbum dela e, assim, se tornou conhecida por muitas pessoas. No Luz Azul, o François também toca, e saber que essa música começou lá, no álbum, é algo muito especial.
Paris, para mim, é essa cidade que tem tudo a ver com momentos importantes da minha vida — o lançamento do meu álbum, minha conexão com a astrofísica e minha primeira experiência em um Instituto de Astrofísica. Trabalhar no Instituto de Astrofísica de Paris me rendeu a coautoria de um artigo para a revista Astronomy and Astrophysics, uma publicação de extrema importância para a comunidade científica. Mesmo eu não tendo seguido a carreira acadêmica, esse marco é gigante para mim. Fico muito grata aos meus professores, especialmente ao professor Raimundo Lopes, que me fez perceber a importância dessa realização.
Agora, de volta a Paris, estou partindo de um momento muito difícil como artista. Ser artista independente nunca foi fácil, mas passei por questões muito delicadas que me fizeram sentir que meu trabalho estava desvalorizado. Foi uma grande quebra criativa, com uma falta de vontade de estar em contato com a arte. E, nesse período, a dança foi um lar para mim. Enquanto eu estava em um conflito interno com a música, a dança estava lá, sempre me trazendo de volta à música.
Quando cheguei a Paris e recebi uma recepção calorosa da cena local, fiz uma imersão na Blossom Talent Agency, que foi muito importante. Passei dias em contato com a música, criando e gravando. A Blossom também se propôs a gravar uma parte do meu videoclipe aqui, e já havíamos gravado outra parte em Florianópolis com a Cinema Perene, empresa de cinema do meu irmão. Não foi um plano, mas algo que aconteceu naturalmente. Quando a Blossom se ofereceu para gravar o clipe, achei que seria uma excelente oportunidade para mostrar a música voltando a ser presente na minha vida, como artista independente, cercada pelas pessoas que acreditam no meu trabalho e que fazem isso acontecer.
Quis contar essa história de uma maneira não literal, mas que deixasse um sopro de inspiração para quem assistisse, e que também fosse uma continuação de Lua Ferida. Se você assistir ao final de Lua Ferida, verá que o clipe de Adir e Faú começa com a mesma ideia, e as capas dos dois clipes se encaixam quase como um puzzle espelhado. Se você juntar as capas de Lua Ferida e Adir e Faú, verá que elas se conectam.
Foi fundamental ter ao meu lado a Leonor Escola, que fez minha preparação para a atuação e também dirigiu o clipe comigo. Trabalhar com quem te prepara para atuar é incrível, porque essa pessoa está profundamente conectada à mensagem que queremos passar. A parte filmada em Paris também foi realizada com a Blossom, criando uma junção de arte independente. Esse processo teve um significado profundo para mim, pois é uma demonstração de como a arte independente pode ser acolhida e realizada.
Essas duas cidades, Florianópolis e Paris, representam muito da minha história, e o clipe transmite um pouco disso. A diferença climática visível, com a parte de Paris filmada no Jardim de Luxemburgo, num dia nublado de outono, e a parte de Florianópolis, filmada num dia de verão, também ilustra a diversidade de tempos e ambientes em que a artista está, mas sempre servindo ao seu propósito de espalhar beleza pelo mundo.
Unir canto e dança do ventre é uma combinação que exige muita preparação física e vocal. Qual foi o maior aprendizado durante esse processo intenso e como ele transformou a forma como você se expressa artisticamente?
Nossa, esse processo transformou toda a minha noção de performance de palco. Muito, assim. E esse processo, eu sempre fui muito comprometida com o estudo, sou meio que nerd de tudo, sempre muito dedicada, mas esse processo exigiu de mim ainda mais estudo. Eu precisava praticar, no mínimo, e fazer exercícios fonodiológicos, pelo menos duas vezes por dia, todos os dias. Então, todo esse processo me deu muitas lições sobre o poder da disciplina e sobre o poder transformador da prática. Eu sempre acreditei nisso, mas ver, na prática, foi outra coisa. Quando começamos com a Glaucia e com a Jade, eu não conseguia dançar e cantar uma frase. Eu não conseguia uma frase! E pensei: “Nossa, eu não vou conseguir. Não vai dar certo.” E elas sempre acreditando. Eu pensei: “Então, eu preciso confiar nas pessoas que eu chamei para estarem comigo nesse processo. Vou confiar nelas e fazer tudo o que elas me mandarem fazer para ver se vai dar certo.” E foi isso. Fui agarrada na disciplina e na confiança que tenho nessas profissionais incríveis. Segui todas as orientações e fiz todo o meu dever de casa. E, nisso, fui vendo meu corpo se transformar: a agilidade, a respiração, a consistência. Então, isso modificou tudo. Meu show subiu vários degraus por causa desse processo, porque hoje tenho muito mais liberdade de movimentação, de dançar não só essa música, mas outras, de descobrir e de passar mensagem também através dos meus movimentos. Acho que transformou tudo, assim. Esse processo trouxe a rotina de cuidados que mais funciona para mim. Agora, conheço muito mais meu corpo, minha voz, meu desempenho, minhas limitações. Sei: “Ah, está faltando isso aqui.” Conheço muito mais por conta desse processo. E, de novo, o poder da disciplina e da prática.
Você menciona o artista Baloji como uma inspiração para o estilo visual do videoclipe. De que forma ele influenciou a maneira como você enxerga a arte e como isso se reflete no seu trabalho?
Para mim, conhecer o Baloji e sua arte foi um marco. Eu o conheci através do meu irmão, o François Muleka, que me apresentou a um videoclipe. Ele já estava encantado pelo audiovisual, e eu fiquei maravilhada, principalmente porque tanto eu quanto o François Muleka nascemos e crescemos no Brasil, mas somos de família congolesa. Somos Congo-brasileiros. E existe um grande “não lugar” nesse aspecto de identidade, pois não somos brasileiros o suficiente, nem africanos o suficiente, e ficamos em um espaço totalmente diferente da afro-brasilidade, que não é a mesma das pessoas afro-brasileiras, né? Somos africanos brasileiros. Então, não temos a mesma conexão de contexto sociocultural com as pessoas que parecem conosco no Brasil. Isso sempre nos fez sentir meio isolados, sabe?
Quando descobrimos a arte do Baloji, que é congolês-belga, nos identificamos muito com a ideia de afrocontemporaneidade e de compreender melhor questões sobre pertencimento. Muito se fala sobre a ancestralidade, mas a discussão sobre a África contemporânea no Brasil ainda é muito fraca. Somos muitos africanos no Brasil. Onde estamos? O que estamos fazendo? E o tempo todo somos considerados como pessoas de fora, e estamos de fora dessas discussões, mas quando se trata dos privilégios que nos afetam, eles afetam a todos nós. Então, sempre houve essa carência de compreensão.
Outro encontro marcante para o entendimento da afrocontemporaneidade foi com Lameque Macaba, que conheci aqui em Paris. Ele é um intelectual da música e também músico, mas fala muito sobre a afrocontemporaneidade. Ele também é um artista afrocontemporâneo, angolano-brasileiro. A família dele é angolana, ele nasceu e cresceu no Brasil e mora em Paris. Ele trouxe essa conversa de forma muito intelectual, o que ajudou a entender ainda mais essa questão.
Enfim, quando vimos o trabalho do Baloji, nos enxergamos ali. Eu considero que me vi como uma possibilidade de existência e identidade no momento em que conheci o trabalho do Baloji, não apenas como cantor, rapper e cantor, mas principalmente como alguém que expressa a visualidade da forma como ele faz em seus trabalhos visuais e audiovisuais. As imagens estáticas são muito emocionantes, tocam profundamente. Tanto eu quanto a Leonor, que fez a direção do clipe comigo, pensamos: “Não, precisamos ter imagens estáticas.” É muito importante citar a referência, falar de onde vem. Citar o Baloji, porque vejo ele como referência para muitos trabalhos que estão surgindo, especialmente no discurso afrofuturista.
E é importante dizer que o afrofuturismo também precisa passar pela afrocontemporaneidade. Precisamos entender que a África de que tanto se fala, o que está acontecendo hoje nesses países, onde estão essas pessoas, será que elas estão mais perto da gente do que imaginamos? Enfim, vejo o trabalho do Baloji sendo referência para muitas coisas que estão surgindo hoje, mas, infelizmente, pouco vejo ele sendo citado. Existe um grande conforto na omissão de referências de pessoas pretas, retintas e africanas. As pessoas se sentem muito à vontade para omitir quando somos a referência, a não ser que seja algo “hype”. E isso é muito triste. Vejo isso acontecer, até por parte de pessoas negras, que se sentem confortáveis em omitir quando somos a referência. Nossa intelectualidade é pública. Essa é a sensação.
“Adiref Aul” é descrita como um convite à reinvenção e à transformação. O que você espera que os ouvintes sintam ou descubram ao mergulhar nessa experiência tão particular que você criou?
O que eu espero, o que eu gostaria, é que isso fosse provocativo, um convite para um mergulho profundo nas coisas mais improváveis que cada ser humano pode ter dentro de si. E também um encorajamento, né? Não sei o que uma criança, por exemplo, pode sentir ao descobrir que há uma música ao contrário, que está ali, lançada, e é isso, né? De repente, pode haver algo que ela pense, algo que ela mesma julgue como uma maluquice, como eu julgava cantar ao contrário quando era criança. E, depois, quando fui cantar pela primeira vez, senti vergonha disso.
Espero que seja algo que encoraje as pessoas, e encoraje os artistas a olharem para a própria arte sem medo, a olharem para o que está dentro de si sem se limitar tanto pelo que está fora, para que as coisas surjam de forma inovadora, para que coisas mais diversas apareçam, porque cada ser humano… E acho que essa é a mensagem: cada ser humano tem uma vida única, muito especial. E é por isso que a partilha é tão potente, porque nos dá acesso às infinitas possibilidades que nunca viveremos na nossa vida, pois é a partir do outro, de outro lugar.
E é isso, eu sinto a sede disso, de ver o olhar verdadeiro, de como outras pessoas veem o mundo, e como, às vezes, isso fica limitado pelo que é “vendível” ou pelo que daria audiência. Enfim, o que eu espero e o que eu gostaria, realmente, é que isso fosse provocativo nesse sentido e que incentive as pessoas a olharem, dar voz e dar lugar para as coisas que elas podem até julgar como “malucas” na própria arte, na própria criação. Um olhar criativo sobre o mundo, sobre as possibilidades e sobre a própria criatividade.
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