O multi-talentoso desenhista, roteirista e designer gráfico, Hermes Ursini, mergulha nos confins da ficção e realidade em seu mais recente trabalho, “Bando”, marcando seu retorno ao mundo das histórias em quadrinhos. Nesta HQ, Ursini utiliza uma variada gama de traços, técnicas e gêneros literários para explorar as complexas implicações da criação artística em uma sociedade movida pelo capitalismo. Ele também analisa o papel desses profissionais em uma era contemporânea e ressalta a importância de refletir sobre a arte em um mundo cada vez mais dominado pela automação.
A história segue o roteirista Onetti, que, após retornar ao Brasil, faz uma descoberta surpreendente: uma gaveta cheia de obras de autores anônimos. A percepção da importância dessas obras o conduz a uma jornada pessoal, na qual elementos e figuras históricas da HQ europeia, como Dionnet e Gir, o inspiram a explorar o Oriente em São Paulo, mais especificamente o bairro da Liberdade. Lá, ele se encontra com o editor Shiro Tahashi, e juntos percebem que precisam criar um mundo fictício para desenvolver um único projeto editorial.
Dessa forma, o público é apresentado às tramas e biografias de diversos artistas: Felipe Layer, Darta, Bob Bear e Sherman. Cada um desses personagens é uma faceta de Onetti, que por sua vez é uma criação fictícia inspirada no próprio Hermes Ursini. Com essa liberdade criativa, o autor explora não apenas as complexidades do processo artístico, mas também questões profundamente enraizadas na realidade de todos nós. Isso inclui representações de personagens de diferentes estratos sociais envolvidos em relacionamentos conflituosos com o mundo do trabalho.
Por meio dessas páginas, o autor tece uma rica tapeçaria de narrativas, incluindo a história de um homem lidando com a perda de um amigo querido, um jovem que sonha em se tornar um artista como forma de criar um novo mundo, um intelectual submetido às amarras do sistema capitalista que percebe sua condição de proletário, e um pintor que se revolta contra o mercado das galerias de arte, entre outros relatos. Através desse entrelaçar de vozes, personagens e estilos, Hermes Ursini demonstra como, em muitos casos, a arte se revela como o último refúgio para as pessoas em sua busca por sobrevivência. “Bando” foi realizado com o apoio do Programa de Ação Cultural (ProAC) do Governo do Estado de São Paulo, através da Secretaria de Cultura, Economia e Indústria Criativas.
“Bando” aborda a complexa relação entre a arte e a sociedade capitalista. Como essa interação é explorada em sua história em quadrinhos?
Quadrinho é uma pedrinha na engrenagem capitalista. Ele pode ser isso pois depende de uma pequena equipe e pouquíssimo dinheiro para ser produzido e ganhar a luz do dia. É autoral, individual. É uma pedrinha, mas faz parte, está no fluxo do consumo. Em “Bando”, a interação vai desde a primeira história, “Blue Bar da Rê”, com um narrador deslumbrado num happy hour cosmopolita, até a penúltima, uma citação de “Na Pior em Paris e Londres”, de Orwell, que escreveu esse livro transpirando o horror de viver de forma miserável em meio à riqueza sem limites numa Europa dos anos 20 do século passado. Ele denuncia a terrível injustiça com os pobres, os burros de carga que hoje estão sendo substituídos por máquinas. Os trabalhadores intelectuais agora também estão entrando na linha de tiro, com essa balela da IA. Fiz esses desenhos com canetinha Bic, rapidamente, só esboçando e, depois, usando muito Mac. Nada mais capitalista.
Qual é a inspiração por trás do personagem Onetti e sua jornada para encontrar os trabalhos de autores anônimos? Como isso se relaciona com sua própria experiência como autor de quadrinhos?
Onetti é o personagem, é ação. Onetti é um demiurgo, já andou pelo mundo, é roteirista e criador de filme e HQ, que são universos em que a gente mergulha por algumas horas. A jornada de Onetti é interna, ele está percorrendo seus meandros para atender ao plano do seu editor, o japonês Shiro. Claro que é autoreferenciado. Mas quem cria inventa sem parar. Surfa nas ondas que cria em sua mente. Inventar mundos é o que mais precisa ser feito, e você só obtém um bom resultado se for de alguma maneira fiel ao que se chama de realidade objetiva.
A mistura de diferentes estilos e gêneros literários é uma característica marcante de “Bando”. Como isso contribui para a narrativa e a reflexão sobre arte?
Se você imaginar esse álbum com o mesmo estilo visual e literário do começo ao fim, não terá o mesmo álbum no final. As quebras de ritmo e fluxo pelos diferentes estilos e textos obedecem a um imperativo da história. Onetti está indo buscar os trabalhos de diferentes caras em vários lugares.
Secundariamente: quando a MTV impôs a sua linguagem de clipes e muita alteração no fluxo das montagens, houve gente que passou a não entender mais a história, sobretudo os mais velhos. Hoje a gente tem sono assistindo aqueles clipes antigos. Eu vivi o impacto inicial do som de Jimi Hendrix quando trabalhava em rádio e fiquei abismado quando me disseram que aquilo era blues. Adorava, mas não entendia. Outro dia ouvi no rádio a gravação original de “Little Wing” com o Jimi Hendrix Experience, uma maravilhosa balada, e, de fato, é uma música simples, mas de um gênio que estava adiante do seu tempo.
A cada década percebemos que os jovens chegam com uma percepção cada vez mais alterada. A velocidade da percepção humana está aumentando de forma impressionante. E finalmente, eu gosto de desenhar de vários jeitos, experimentar as linguagens e materiais. Sempre procuro o estilo integrado na história que vou narrar. No começo sempre sou um designer que pensa o trabalho de ilustração que vou realizar em seguida.
A cidade de São Paulo, especialmente o bairro da Liberdade, desempenha um papel importante na história. Como o ambiente urbano influenciou sua narrativa?
Leva tempo para uma cidade entrar na sua vida. Às vezes, o desenhista tem que sentir um cenário à distância, por fotos. Outras vezes, tem que ir até a locação e absorver aquilo em um dia ou pouco mais. Queria ter mais páginas na Liberdade. Tenho SP na própria pele, como dizem os franceses. Gosto de dar bandola pela Liberdade, porque está cheio de histórias, é um lugar mágico. Levamos muito tempo para internalizar São Paulo, mas agora a coisa está fluindo. Nossa cidade é épica.
Pode nos falar sobre os artistas fictícios que habitam as páginas de “Bando”, como Felipe Layer, Darta e outros? O que eles representam?
Eu tinha os trabalhos. Os personagens autores foram surgindo obedecendo ao óbvio: o próprio tipo de trabalho. Felipe Layer é um pintor, ele constrói por camadas, por layers, como todo pintor que usou a técnica do óleo que permite infinitas sobreposições de cores. E tem o esboço muito desenvolvido. Darta é um grafista, um universo do traço, afetado e cortante. Darta é um pincel Martre Kolinsky número 4 carregado de nanquim. Bob Bear é mais próximo do comics, mais gibi, narrativas curtas. E, com Fox e Belmondo, ele fala sobre um de seus ídolos e amigo pessoal, o desenhista Al Fox, já morto, mas que volta um pouco à vida num boteco. Aliás, é um bar icônico: o Balcão, na Alameda Tietê. Sherman é um romântico incorrigível, sempre com um olhar melancólico para o passado.

Seu livro explora personagens de diferentes classes sociais em relação ao trabalho. Como essas histórias refletem as complexidades do trabalho no mundo real?
Se não é herdeiro, você tem que ser um trabalhador para fazer sua vida. Mesmo um político tem que acordar cedo e vestir aqueles ternos de lata para aparecer nos seus ambientes de trabalho e fazer acordos. Para um carregador de sacos, um lavador de pratos, um forneiro de carvão, um ajudante de pedreiro, o trabalho é uma realidade objetiva que acaba destruindo seus ossos. Já o trabalho intelectual come por dentro. Sempre achei curiosas as normas da OIT, que determinam expediente de 6 horas para o trabalho intelectual e 8 horas para o trabalho físico. Me parecia uma moleza, só que não. Em todo caso não conheço trabalhador intelectual que cumpra essa legislação, exceto, talvez, nas repartições públicas. Nos outros lugares, desde o começo da era industrial, nunca se trabalhou tantas horas, com tanto sofrimento quanto agora. E ao mesmo tempo nunca se temeu tanto o fim do trabalho. É um massacre.
Qual é a importância de criar um mundo de ficção dentro do universo das histórias em quadrinhos? Como isso se relaciona com a realidade artística?
Tem uma cena que está numa das histórias do “Bando”, em que o editor olha o trabalho do quadrinista e diz: “Todo trabalho é ingênuo. Essa é a mágica. É ficção, mas você acredita. Não importa o quanto o artista queira ser verossímil. O importante é que o truque seja evidente. Sabemos que é só composição e desenho, mas parece mesmo real”. Em HQ você tem que acreditar no traço, na simulação da realidade. Às vezes, você fraqueja, mas é preciso acreditar e começar de novo para dar certo.
Como você acredita que as histórias em quadrinhos podem fornecer um meio para que as pessoas sobrevivam em circunstâncias desafiadoras, como é sugerido em “Bando”?
Um meio para ajudar as pessoas a entenderem que sempre podem compreender a situação em que estão metidas e podem ser autores de seus atos, podem mudar a realidade, ler o que acontece em suas vidas, em sua realidade objetiva com diferentes chaves. Aliás, essa é a maior contribuição da ficção (o romance, a novela escrita, o conto e também a HQ) para o leitor jovem.
A obra foi realizada com o apoio do ProAC. Como programas de apoio cultural contribuem para a produção de arte e literatura no Brasil?
O PROAC é um programa espetacular e tem tornado possível a produção final e o lançamento de muitas obras de alta qualidade. No caso dos quadrinhos, o PROAC é mesmo decisivo, pois os editores só raramente olham para a produção local. É importante notar que o PROAC é decisivo para o processo de produção de um álbum, pois vem apoiar no momento crítico de um projeto, no processo industrial, de fabricação do produto e de distribuição. E prevê contrapartidas sociais bastante justas, facilitando o acesso ao álbum, através de preços bem mais baixos.
Mas é tudo baseado não na oportunidade, e sim, na qualidade das propostas, que são julgadas por especialistas de várias áreas que se guiam por critérios de qualidade artística e cultural. Uma ferramenta de produção cultural de primeiro mundo. Instrumentos como o PROAC já foram muito criticados por políticos obtusos e ignorantes, que não compreendem o que um instrumento de estímulo desses significa para a produção da cultura. Nem se importam com a cultura, e menos ainda com o artista e o produtor cultural.
Por fim, o que os leitores podem esperar ao explorar “Bando”? Quais mensagens ou reflexões você espera que eles levem dessa experiência?
É uma proposta de uma viagem introspectiva, um thriller interno. É como uma estrada em que a paisagem muda, e as referências aparecem aqui e ali o tempo todo. É um universo em que se movimentam personagens e criadores de personagens, do desenho, da literatura, até da música, com sugestões de trilhas sonoras em certos trechos das histórias. É também uma história multifacetada, em que a ação surge do próprio movimento para criar a história. O que o leitor vai tirar dessa experiência depende muito do seu próprio universo e suas referências. Um dos objetivos que mais busquei ao compor esse álbum, foi o de conseguir encantar o leitor, com belas imagens, cores e todo o componente lúdico que existe no contar uma história. As situações que saem de dentro uma da outra e a coisa avança assim até o fim.
Isso podemos chamar também de “o prazer de olhar e encontrar sentidos na narrativa”. Mas o que mais gosto e continuo desenvolvendo em outro álbum que já estou produzindo é a alteração da imagem, a variedade de formatos e recursos visuais, a serviço da narrativa da história. Tem um mundo para ser feito nisso. E um universo inteiro para o leitor experimentar.
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