Deborah Netto convida público a mergulharem em sua essência através de “De-lírios”

Luca Moreira
17 Min Read
Deborah Netto (Foto: Reprodução/Instagram)

No último mês de junho, o Centro Cultural dos Correios, no Rio de Janeiro, recebeu mais uma de suas deslumbrantes exposições, a “De-lírios” da artista Deborah Netto. Dessa vez, o público pode conhecer um das mais antigas e atraentes técnicas de pintura que vem se desenvolvendo desde a Idade Antiga — a  encáustica,  uma técnica de pintura que usa cera como aglutinante dos pigmentos, aplicada com pincel ou uma espátula quente.

Contando com 32 pinturas, o trabalho de Deborah teve como inspiração as suas observações em sua própria casa em Maricá, onde vive cercada pela Mata Atlântica e o mar. Entre os mais diversificados elementos que se mostram presente em suas telas, encontram-se desde cera de abelha até tintas artesanais, produzidas pela própria artista através dos insumos que seleciona.

A artista alude a elementos naturais como ar, água, flores, folhagens e jardins, que convidam o espectador a mergulhar no maravilhoso mundo de materialização de suas inspirações, matizes e formas. Formada pela Escola de Belas Artes (EBA) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UERJ), Deborah foi estimulada desde pequena para arte através de sua família, e hoje, busca inovar cada vez mais em sua própria identidade. Confira a entrevista!

Recentemente você esteve presente no Centro Cultural dos Correios com a exposição “De-lírios” que teve como foco as encáusticas – técnica de pintura térmica que se utiliza da cera sendo aplicada através de pincéis e espátulas. Como foi a montagem desse projeto e que mais a atraiu por essa técnica?

Na realidade, tudo começou a partir de um bate-papo informal há menos de um ano, com meu marido Marcelo Duprat, que além de pintor, foi meu professor na UFRJ. Sabe aqueles papos de jantar? Estávamos na realidade falando de significados de nomes, Deborah significa abelha. E prontamente ele falou — “Você deveria tentar encaustica” — Encaustica é com cera de “Deborahs”, fazendo um trocadilho entre meu nome e a técnica. O Projeto De-Lirios surgiu da minha série de aquarelas e telas em acrílicas, anterior a essa nossa conversa. Eu mais do que na hora optei. “Não vou expor mais os quadros pintados. Os que já expus ou acabei de produzir. Vou tentar a encaustica. Manterei minha “linguagem” pessoal, e pesquisarei a respeito. Preciso de renovação.” — e para surpresa geral, resolvi assim! Reli o projeto, mantive 90% dele, já que só mudaria o meio de expressão, arregacei as mangas e comecei a pesquisa.

Esse foi os “start” para uma loucura (literalmente) que instaurei em minha casa. Precisaria de matérias-primas difíceis, cera de abelhas filtrada, resina damar, carnauba pigmentos e ferramentas que não teria tempo hábil para iniciar. Seria uma grande “gambiarra” já que ao pesquisar percebi apenas 3 nomes no meio que utilizavam a técnica, e nenhum dos trabalhos deles em nada pareciam com minha linha de trabalho.

A técnica me atrai por ser uma verdadeira alquimia, pela diversidade de materiais que se pode aderir a ela. Sou muito curiosa por natureza e quanto mais estudava a respeito mais pensava — “achei minha técnica”.

Deborah Netto (Foto: Marcelo Wance)

A arte costuma a ser algo muito subjetivo, onde é refletido principalmente o olhar do artista sobre o mundo que o cerca, no caso da “De-lírios”, a natureza. Quais foram os olhares percebidos através de você que a levou a explorar mais esses aspectos do mundo nas suas criações?

Moro em meio à natureza, cercada pela Mata Atlântica e em frente a um mar aberto de quilômetros na divisa exata entre Niterói e Marica. Tenho minhas plantas, meus bichinhos e não sei viver cotidianamente em locais com barulho ou poluição. Embora adore estar no Rio em eventos, meu “cantinho” é muito inspirador, estou perto de tudo, mas abençoada por estar distante de muitas coisas que não me agradam. Quer técnica mais natural? Cera de abelhas, resina damar, carnaúba, pigmentos naturais.

Uma gama de materiais naturais para expressar “coisas naturais”? Eu não consigo me ver em outro lugar. Muitas vezes fico horas observando as reações das plantas em relação ao tempo, os barulhos que se misturam de vento, mar, canto de pássaros. Um “barulho silencioso e intimista”. Absorvo isso como o ar que respiro, e me inspiro!

Já não é de hoje que costumamos escutar que é sempre preciso olhar para arte para que possamos refletir e compreender como é o mundo que nos cerca, percebendo detalhes que muitas vezes passam diante dos nossos olhos e não conseguimos registrar por nós mesmos. Em relação a essa linha de pensamento, como você enxerga a relação dos jovens de hoje com a cultura em geral?

Existe um paradoxo atualmente que muito me incomoda. Por ser antenada e sempre me atualizar, me comporto de forma diferente de muitos com minha idade. Tenho 60! Os jovens de hoje tem em sua maioria uma ferramenta riquíssima para crescerem! Hoje você pode conhecer o mundo, visitar museus, ler livros, se informar sem haver fronteiras! Você pode estudar à distância, pode comprar sem sair de casa! Entretanto, penso que muitos jovens não sabem mensurar o valor disso. Já nasceram dentro desse universo.

Essa ferramenta para cultura é impecável! Entretanto, acho muito pouco utilizada. De um lado, jovens com sede de “saber, de ser”! Do outro? A cultura da superficialidade e da banalidade. Onde as selfs e as fakes news falam mais alto. Não podemos deixar que esse universo torne as relações cada vez mais impessoais. Temos que tentar mostrar aos jovens que existe vida além da Internet. Que observar a foto de um quadro no Instagram, uma exposição virtual… Eles não têm o mesmo valor que se reunir com amigos e visitar uma ‘vernissage’. Não podemos deixar a vida se resumir em uma tela de celular.

Deborah Netto (Foto: Marcelo Wance)

Voltando a falar sobre a encáustica, apesar dela ter surgido ainda na Idade Antiga entre os romanos e os gregos, ela não está sendo tão popular entre o público, porém, além de você, outros nomes como Jasper Johns, Mauricio Toussaint, Diego Rivera, Georges Rouault e João Queiroz. O que acredita ser o motivo desse esquecimento sobre ela?

Vivemos em um mundo aonde a praticidade vem por conta da industrialização de tudo! Antigamente os pintores faziam suas tintas! Isso fazia parte da rotina de um artista até a industrialização surgir! Hoje todos tem qualquer material ao seu alcance em todas as prateleiras. No exterior você encontra bastões de encaustica de todas as cores e feitios! Um material caro, mas prontos para serem derretidos, por isso, nos EUA e Europa tem muitos artistas os utilizando. A técnica requer paciência, tempo, ferramentas próprias, e é justamente aí que constato a magia!

No Brasil, esse material pronto é caríssimo, pois é importado. Por minha vez, sinto um prazer inenarrável de comprar os insumos e eu mesma prepará-los. É uma arte à parte! Que pelo que tenho visto, é considerada “obsoleta”, mas pasmem! É a técnica mais durável!

No que diz respeito tanto ao seu eu profissional com a arte como em sua vida no dia-a-dia, quais você acredita serem as suas maiores motivações e quais são os momentos que as suas ideias costumam nascer?

Eu observo a vida por um ângulo muito pessoal, meio “poliana”. Uma vida onde acordo e durmo agradecendo por estar aqui. Eu venho de um tratamento intenso de câncer de mama e outros problemas sérios de saúde, onde ou eu ficava me olhando com pena de mim mesma, ou eu reagia e revertia meu tempo para o que tenho de melhor! E meu melhor? Considero a arte!

Minha motivação reside aí, em ter perdido a visão do olho esquerdo por conta de um aneurisma que a princípio me deixaria cega ou paraplégica, de um diagnóstico de câncer “terminal” de pulmão, que longe disso era uma tuberculose miliar. Por fim um câncer de mama que ainda trato. Eu sei que a vida é breve! Não quero passar por ela sem deixar “minha marca”, sem ter feito o que mais amo! Geralmente minhas ideias surgem no bate-papo cotidiano com a minha família! Posso sem demagogia dizer que surge da minha vontade de viver!

Deborah Netto (Foto: Marcelo Wance)

Bacharel em pintura pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro, você foi estimulada desde jovem para o artístico. Poderia nos contar um pouco mais sobre como a sua trajetória na arte começou e qual foi o principal momento em que passou a vê-la como uma profissão na sua vida?

Cresci criada por meus avós paternos. Meu avô Paulo Netto foi diretor da Rádio Nacional e o convívio com essa parte da arte me foi muito útil! Meu falecido pai era diretor de programas na Rede Globo, também Paulo Netto (Nettinho). Convivi com meu pai criando especiais infantis, pintando quadros maravilhosos!  Muito novinha eu desenhava por distração. Fiz faculdade de Direito, onde me formei por teimosia (rindo). Nessa mesma época fiquei como assistente de papai e sua esposa Vera Netto, quando comecei a me interessar por cenografia, maquiagem artística, e tudo que precisassem. De forma autodidata comecei a pintar aquarelas, o que me trazia retorno financeiro e independência.

Em minha família, todos os meus irmãos são ligados à arte! Todos têm a veia artística de nosso pai e avô e por parte de mãe, também! Entrei na UFRJ já com 35 anos, aflita para variar com a saúde em meio a um divórcio pacífico, mas necessário. Decidi então pela Belas Artes! Acolhida pela família e meu irmão também, o Paulo Netto, que me presenteava com materiais e ajudas de custo. A faculdade era longe, eu acordava as 4h da manhã, passava no horário integral, e um mundo novo se descortinou! Lá conheci Marcelo com quem estou desde então.

O resumo é esse… “casada com artista plástico, amante das artes plásticas… ou casada com as artes plásticas, amante de um artista plástico”. Costumo dizer que certas coisas estão escritas, então era o momento e eu soube perceber! Comecei a ver como profissão do primeiro minuto de aula até então.

Além da sua autoria no projeto, a exposição contou com a curadoria de Edson Cardoso e Marcelo Duprat, além da produção de Renata Costa. Como foi contar com a parceria deles durante esse tempo de trabalho?

Somos antes de qualquer coisa amigos! É um encontro de almas, onde o respeito, a fidelidade e a comunhão estão sempre presentes! Marcelo Duprat, antes de marido é pintor e doutor em pintura pela Universidade de Lisboa, Renata Costa, uma excelente artista plástica e amiga de muitos anos, e Edson é meu curador, dono da Galeria AVA, que abriga meus trabalhos no exterior, há alguns anos nos descobrimos e desde então estamos juntos.

Acho importante que três personalidades tão distintas da minha estejam juntos comigo. Os olhares críticos deles os incentivos e os puxões de orelhas me ajudam! Não posso esquecer minha assessora de imprensa Paula Ramagem na equipe e no meu coração!

Deborah Netto (Foto: Marcelo Wance)

Na sua biografia é dito que você considera que “o artista expressa o que vai na sua alma”, sobre esses sentimentos, como eles costumam ocorrer e você acredita que com dedicação e vontade, todos possam conseguir visualizar esses sentimentos?

A obra de arte, no meu caso a pintura, independente da técnica, se for executada com sentimento, prazer e dedicação? Sim, ela vai alcançar o espectador e com certeza independente da linguagem ou técnica ela passará algo indizível! Todos podem visualizar todos dispostos a isso.

Veja bem, isso para os que pintam por amor, e para os que admiram por amor. Sem preocupações mercadológicas, sem preocupação em agradar. Dentro de mim, existem dúvidas, existem angústias, frustrações como em qualquer outro ser humano. No entanto, não existe apenas isso! Existem sentimentos bons de amizade, solidariedade e respeito pelo próximo. Amor pela vida! É isso que penso que os artistas têm que buscar dentro de si enquanto se expressam. Valorizar esse dom, tentar alimentá-lo cada vez mais com ideias positivas e ocasionalmente usar o famoso óculos cor de rosa!

Em relação a esse tempo que ficou em exposição no Centro Cultural dos Correios, como foram as suas expectativas e que conclusão chegou a respeito da reciprocidade do público com a sua obra?

Dediquei-me nos últimos meses de forma quase integral, me dividindo entre os afazeres domésticos, estudos e prática da técnica. Após montada pensei — “poderia ter pintado melhor?” — SIM. Sou muito autocrítica. Ao mesmo tempo, a receptividade, o mundo de mensagens com elogios que venho recebendo tem sido algo muito gratificante!

As pessoas estão encantadas com os quadros e com a técnica que muitos desconheciam. Isso não tem preço! Fico lisonjeada e em simultâneo preocupada em não deixar a vaidade me dominar. Pretendo montar outras “De-Lírios”, mantendo a técnica, mas com quadros novos quem sabe? Esse nome veio também de um trocadilho de meu sogro que também é pintor, Walter Pereira. Ele sempre brincou sobre o meu “delírio” artístico. Daí surgiu o título bem próprio desse meu “mundo delirante” que espero que todos façam parte.

Acompanhe Deborah Netto no Instagram

Quer acompanhar mais as novidades da coluna? Siga Luca Moreira no Instagram e no Twitter!

TAGGED:
Share this Article