O luto em The Bear, uma série ansiosa

Luca Moreira
10 Min Read

Conversando com o amigo que me indicou The Bear após terminar de assistir a série, ele disse que a maneira com a qual a série trata o luto é muito próxima ao que ele sentiu em uma experiência pessoal recente com a morte. Isto porque o espectador sabe que Michael – um importante personagem para a narrativa do seriado – existiu e morreu, mas quase nunca o vê, exceto pelas raras aparições; uma no sexto e outra no sétimo episódio. E o que é o luto senão lidar com a falta que a ausência permanente de alguém deixa?

A minha sensação enquanto espectadora, no entanto, é a de que Mikey sequer morreu, apesar das afirmações e reiterações do contrário nos diálogos da série. O irmão de Carmy é citado desde o primeiro episódio, mas as pessoas que estão lidando com a sua perda mantêm os sentimentos de luto presos dentro de si, embora não tenham problema em atestar o fato: Mikey está morto.

The Bear, ou O Urso, trata de um pequeno restaurante localizado em Chicago, sob o recente comando de Carmy, interpretado por Jeremy Allen White, um prestigiado chef de cozinha que foi considerado o melhor do mundo pela revista Eater, lançou um livro gastronômico e trabalhou nos melhores restaurantes do mundo. A despeito do currículo e da reputação impressionantes, o protagonista acabou indo parar no The Beef, o restaurante deixado a ele pelo irmão suicida.

The Original Beef of Chicagoland é o cenário principal do seriado, quase um personagem – e certamente um dos principais. A pequena e movimentada cozinha desperta uma sensação quase claustrofóbica que contribui para a construção do que talvez seja a característica mais sobressalente de The Bear: o caos. Em adição a isso, as falas sobrepostas umas às outras, a pressa exigida pela cozinha e os nervos constantemente exaltados das pessoas que trabalham ali formam a energia caótica da série, de modo a complicar a compreensão de qualquer coisa que seja dita. Eles não se entendem entre si e nós também não os entendemos. A impossibilidade de compreensão, entretanto, comunica algo: a série trata da ansiedade não só em seu conteúdo, mas também em sua forma.

Carmy é uma pilha de nervos contidos, uma bomba relógio que nunca se sabe quando pode explodir, em um ambiente bastante propício para tal. Ao longo dos episódios, alguns flashbacks sem grandes explicações, embora bastante elucidativos acerca de quem é o brilhante chef, mostram Carmy em uma experiência tóxica enquanto subalterno de um chef que o xingava e desmerecia seu trabalho e suas habilidades, taxando-o de inútil e incapaz.

Enquanto comanda a cozinha, Carmy tenta desvendar as anotações e as contas geridas pelo irmão recém-falecido e lidar com a irmã que busca se aproximar e faze-lo processar as dores da perda que ambos dividem. Nesse sentido, ela o incentiva a participar das reuniões de Alcóolatras Anônimos (AA).

Até o penúltimo episódio da série, nós não temos acesso, assim como Sugar (Abby Elliott) – apelido da irmã do protagonista -, aos sentimentos de Carmy. Sabemos que ele é constantemente perturbado por memórias negativas, tem dificuldades para dormir e é assombrado pelos mistérios que rondam a figura do irmão. O protagonista precisa lidar também com a responsabilidade de comandar a cozinha do restaurante da família enquanto sofre pressão, sobretudo por Richie (Ebon Moss-Bachrach), a quem se refere como primo, devido aos problemas financeiros do restaurante desde que Carmy passou a assumi-lo. O relacionamento dos dois é conturbado; existe a intimidade de se conhecerem desde a infância e a proximidade familiar, mas, ao mesmo tempo, a disputa por liderança, já que o “primo” era autoridade até a morte de Michael. O piloto de The Bear resume bem: Richie quer servir espaguete – prático e econômico. Carmem quer pratos refinados e variados, a fim de consertar e elevar o status do lugar.

Carmy e Richie discutindo na despensa do restaurante / Reprodução

Além de Richie, o restante da equipe não parece bastante satisfeito com a mudança de comando e do modo de trabalhar, afinal, eles tinham um sistema. Então Carmy passa por um período de “teste”; ele precisa conquistar aqueles “chefs”, como chama a todos na cozinha em sinal de respeito. Quando prova o seu potencial, ele passa a receber o respeito que preza.

O contraponto dessa dinâmica é Sidney, uma jovem talentosa, competente e visionária nos negócios. Por essas características, ela é rapidamente promovida, por assim dizer, a um cargo de comando na cozinha e, por isso, também sua para conquistar o respeito dos outros chefs, especialmente de Tina (Liza Colón-Zayas), cozinheira experiente que trabalha no The Beef há anos. Carmy a contrata depois de duas semanas trabalhando no The Beef, sob protesto de Richie, que cuida da administração do estabelecimento e também trabalha no atendimento dos clientes. Ayo Edebiri faz sua primeira aparição já no primeiro episódio.

A relação entre Sid e Carmy é um ingrediente especial ao seriado. A jovem possui grande admiração pelo chef e não se acanha em dizer o que pensa, por isso a contratação de Sidney é um ganho para o restaurante, além de ser a única da série que não tem uma história com Mikey, por essa razão, ela se aproxima de nós, quase como se enxergasse a situação de fora. No quarto episódio, a estética caótica da série se esvai devido à urgência de organização que Sidney pontua para Carmy. De repente, o ambiente parece ter muito mais ar. É um alívio também a quem está por trás da tela.

Sidney e Carmy do lado de fora do restaurante / Reprodução

Sidney, no entanto, tem um defeito. A impaciência é o fator comum entre suas constantes trocas de emprego e no restaurante de Carmy não foi muito diferente. Entre suas sugestões de melhoria e crescimento, ela deu a ideia de usar uma máquina de pedidos, depois de oferecer a um cliente um prato que o protagonista havia dito que ainda não estava pronto. O ritmo frenético dessa máquina expedindo pedidos finalmente leva Carmy ao ponto máximo de estresse.

Marcus (Lionel Boyce), o responsável pelas sobremesas, consegue finalmente a receita perfeita de donuts que vinha buscando e experimentando obsessivamente, no momento mais inoportuno possível. O donut perfeito é jogado no chão por Carmy, que, para Marcus, havia se tornado uma espécie de mentor. Este clímax resulta no pedido de demissão de Sidney e, posteriormente, na abertura de Carmy.

O protagonista, por fim, desabafa em uma reunião dos AA, em uma cena emocional na qual a atuação de White se destaca bastante. Aqui, lado a lado com a cena na qual Richard fala para Carmem o que ele deveria ter feita para evitar a morte de Michael, denotando a culpa que carrega pelo que aconteceu, é quando Mikey de fato morre. Antes do último episódio, ele está o tempo inteiro ali. Depois de receber de Richie o envelope endereçado a ele, Carmy tem o desfecho que nunca tivera, porque estava distante do irmão que tanto admirava e porque não esteve em seu funeral. Ele nunca chegou a se despedir.

Receita de espaguete da família Berzatto, deixada por Michael para Carmem / Reprodução

Na conversa com o amigo que eu preciso agradecer por ter me indicado The Bear, eu disse que acho que os lugares ficam impregnados das pessoas. Aquele restaurante era Mikey, ele está no concreto, nos tijolos, na história daquele estabelecimento. Aquelas pessoas com quem ele trabalhava, o irmão, a irmã, o “primo”, tudo, de certa forma, gira em torno de um personagem que mal aparece. E ele não precisa aparecer, porque está ali. Em tudo.

Com a aceitação da morte, se encerra a primeira temporada. A partir da aceitação e do confronto e libertação dos próprios sentimentos, todo o resto parece se alinhar. Marcus perdoa Carmy, Sidney retorna ao The Beef, que se torna The Bear depois que o chef resolve enfim abrir as latas de molho de tomate, que continham algo muito mais valioso do que molho, para fazer a receita de espaguete que o irmão deixou a ele no envelope postumamente aberto.

Depois do envelope aberto, a morte se torna real, quase como se tomasse forma material. Agora, Mikey não está mais ali.

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